O jornalista como fonte da História
Lúcio Flávio Pinto
Originalmente em seu blog Agenda Amazônica
Heródoto, o pai da história, dizia que só dava ouvidos aos seus interlocutores se eles eram testemunhas oculares dos acontecimentos. Não os levava em consideração quando repetiam notícias transmitidas por outros. O jornalismo tem esse valor como conhecimento quando testemunha o cotidiano. Como faz o jornalista Montezuma Cruz, há décadas, em Rondônia.
Ele acaba de lançar, em Porto Velho, um documento precioso para a história de uma das regiões mais agredidas da Amazônia. É seu quinto livro, Território Dourado (154 páginas, em formato grande). O subtítulo confirma a importância do tema: “Histórias sinceras do garimpo de ouro, violência nas corruptelas, apogeu e queda da zona boêmia porto-velhenense”.
O livro passa a ser fonte indispensável para saber e sentir o percurso que Rondônia foi obrigada a seguir, tocada pelos seus desbravadores, colonos, imigrantes e capatazes. Montezuma é dos raros que pode declarar: “meninos, eu vi”. Viu quase tudo, escreveu muito – e com grande competência.
A seguir, sua autoapresentação e dois trechos do livro:
Cheguei a Rondônia em 1976 a serviço da Folha de S. Paulo. Depois, trabalhei para o Jornal do Brasil e O Globo. Presenciei o apogeu da Província Estanífera; dificuldades enfrentadas por colonos em projetos do Incra; as primeiras exportações de cacau e a doença que dizimou suas lavouras; o resgate de fósseis no rio Madeira; e alguns conflitos indígenas.
Antes da criação do estado acompanhei as atividades do Centro de Triagem de Migrantes em Vilhena (Cetremi), e a chegada dos recursos do Polamazônia e Polonoroeste (programas de desenvolvimento que impulsionaram a elevação do antigo Território Federal).
O Cetremi era uma espécie de “porteira humana” em Vilhena. Também trabalhei em jornais locais: A Tribuna, O Guaporé, O Estadão de Rondônia, O Parceleiro (Ariquemes), Diário de Rondônia (Ji-Paraná) e O Imparcial.
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“Não mexa com meus meninos”
O garimpeiro João Capistrano e um amigo saíam do garimpo para retornar a Porto Velho. Acenava pedindo carona até que o motorista de uma camionete parou numa estrada vicinal.
– Pode levar a gente para Porto Velho?
– Posso, sim, vocês sobem aí, mas não mexam com os meus meninos.
Segundos depois de estranhar aquela recomendação, Capistrano olhou o chão da carroceria e se deparou com dois cadáveres cobertos apenas por redes.
Apertaram o nariz por alguns minutos e em seguida viajaram em pé, pela empoeirada estradinha. “Não teve jeito, se baixasse a cabeça sentia o forte odor dos defuntos, e olhando pra cima, a gente só engolia poeira”, ele conta.
Chegando ao trevo do Roque, em Porto Velho, dois agradeceram ao motorista, saltaram da carroceria e respiraram com alívio.
O delegado Jovely Gonçalves, do 4º DP [Área de Garimpos] me informava em dezembro de 1984 que as estatísticas apontavam 59 mortos ao longo do rio Madeira, dos quais, 20 por assassinato. Mas logo admitia que esse número seria bem maior.
Totalmente despreparados tecnicamente, a maioria desconhecendo doenças descompressivas ou embolias traumáticas, os garimpeiros também deixavam as balsas desalinhadas para se arriscar ao mergulho. Fatalmente, ao encontrarem ouro, muitos foram vítimas da paralisação do oxigênio por obra da maldade humana daqueles que calculavam a demora na pesquisa e, certamente, sabiam que o seu resultado era positivo.
“O número cada vez maior de mortes de garimpeiros nos rios de Rondônia se deve mais à ambição criminosa [com o corte do mangueiro] do que a acidentes”, afirmava o delegado de polícia Marcus Vinícius Prudente.
“Quando um mergulhador está fazendo uma boa pescada, a notícia se espalha e sempre aparece alguém para eliminá-lo e ficar com a mina”, explicava o delegado.
“Se não tiver um companheiro com arma empunhada lá em cima [na superfície] pra proteger o mangueiro de ar, os caras cortam e o mergulhador que está no fundo morre afogado”, contava para este repórter o ex-garimpeiro Jorge Pereira, hoje morando em Campo Grande (MS). Ele e o irmão Catarino Pereira trabalharam juntos no garimpo Sovaco da Velha.
A reação à maldade resultava em homicídios. Celso Teixeira da Costa, 29, matava com dois tiros Manoel Teixeira de Souza, 32, em Morrinhos. Acusava Manoel de tentar cortar o seu mangueiro. “Ele já matou seis desse jeito”, acusava.
Em 1984, a Secretaria Estadual de Segurança computava cerca de 70 mortes no fundo do rio, em consequência do corte do mangueiro.
De braços dados com essa maldade, fiscais do trabalho constatavam que grande parte dos compressores a ar funcionavam sem filtro e manômetro, levando aos mergulhadores ar impuro e às vezes com óleo.
O 8º Distrito do DNPM em Manaus e com jurisdição sobre Rondônia fingia ignorar a situação, alegando desconhecer o relatório elaborado pelo fiscal Gerôncio Pedro de Araújo, do Rio de Janeiro.
Dois anos depois, em 1985, o Sindicato dos Garimpeiros estimava em 1.500 o número de mergulhadores.
Quando conseguia resgatar corpos no fundo do rio e identificá-los, a polícia os estendia nus, enrolados em lonas, levando-os em carrocerias de caminhões diretamente ao Instituto Médico-Legal, em Porto Velho. Em seguida, os sepultava sem a presença de qualquer parente, pois a maioria dos garimpeiros vinha de outros estados amazônicos e nem todas as famílias sabiam exatamente onde eles trabalhavam
Gananciosa até o pescoço
A 50ª maior empresa do País, Construtora C.R. Almeida, quis desenvolver pesquisas de ouro. Minha nota a respeito do assunto saiu no 1º caderno do Jornal do Brasil na edição de 4/11/1982:
“A Companhia de Mineração de Rondônia (CMR), recentemente constituída, assinou um contrato no valor de R$ 1,5 bilhão, visando esse tipo de atividade” (…)
O governo estadual já conhecia a fama de grileiro do empresário Cecílio Rego Almeida (*), homem que se apossara de 4,7 milhões de hectares de terras públicas no Pará, área correspondente aos territórios da Holanda e Bélgica juntos, representando um dos maiores casos de grilagem no mundo.
Cecílio mandava no Xingu e quis mandar em Rondônia. Comentava-se na ocasião que a única autoridade destemida em condições de “peitá-lo” seria o capitão Sílvio Gonçalves de Faria, ex-coordenador regional do Incra, que morreu de malária em 1979, pouco antes do auge dos garimpos do Madeira. Mesmo assim, provavelmente não entraria em choque com o poderoso Cecílio, pois sua missão era fazer reforma agrária e não cuidar de garimpos.
Somente em 2011 a Justiça Federal determinava o cancelamento da matrícula do escandaloso imóvel rural denominado Fazenda Curuá, no Pará, ocupado pela Indústria, Comércio, Exportação Navegação do Xingu Ltda. (Incenxil), uma das empresas do grupo C. R. Almeida.
Em represália à divulgação do fato, o grupo C.R. Almeida processou o jornalista Lúcio Flávio Pinto, de Belém (PA), e a Justiça condenou-o à pena de multa por ofensa ao empresário. Se o Estado recuperava as terras griladas, onde caberia a ofensa?
O braço mineral da construtora chegava ao Madeira quando os garimpos de ouro de aluvião alcançavam a marca de três toneladas de ouro por ano. Cinco meses antes desse anúncio, a CMR confiava ao geólogo da Companhia de Pesquisas de Recursos Minerais (CPRM) Gaston Pereira Bascopé o apoio a pequenas empresas mineradoras ao longo da faixa do rio liberada pelo Ministério das Minas e Energia. Essa faixa ia de Porto Velho à fronteira com a Bolívia. Logo, havia espaço para os pequenos.
A presença da C.R. Almeida naquela região resultou em mais ambição, violência, matança de garimpeiros a tiros de rifle, revólver e fuzil, e afogamentos no fundo rio. Um terror.
(*) Cecílio do Rego Almeida, nascido em Óbidos (PA), morreu em 22 de março de 2008 aos 78 anos, vítima de infarto, em Curitiba (PR), para onde fora aos sete anos de idade. Deixou mais de 30 empresas nas áreas de construção pesada, concessão de rodovias e logística de transporte e química e explosivos. Seu patrimônio foi avaliado em R$ 9,4 bilhões.
NOTA DA REDAÇÃO
O livro tem fotos de pinturas do artista rondoniense Rafael Prado, cujo pai foi garimpeiro. O autor expõe a ascensão e queda da zona boêmia de Porto Velho; a ganância de grupos bilionários que lá chegaram entre os anos 1970 e 1980; e o contrabando do metal até pelo antigo Aeroporto Belmonte.
Mais: o analfabetismo, doenças venéreas, drogas, mortalidade materna e cinema no garimpo. Um capítulo (Antes que a luz da memória se apague) é escrito pelo professor e acadêmico de comunicação Marcos Jorge Dias, de Rio Branco, descrevendo seu trabalho numa lanchonete no bairro boêmio do Roque, em Porto Velho, e daí para um dos garimpos no Rio Madeira.
O livro está à venda por R$ 40 pelo e-mail: montezumarondonia@gmail.com