Discurso oficial de floresta em pé no Amazonas é colocado em xeque com mortes e violência contra povos indígenas
Dados do relatório Violência contra os Povos Indígenas 2022, divulgados pelo Cimi, revelam estado que diz ser o mais preservado como líder em violência contra indígenas; em 4 anos, 163 pessoas foram assassinadas no estado
Steffanie Schmidt
dos Varadouros de Manaus
A IMAGEM propagada pelo governo bolsonarista de Wilson Lima (União) de que o Amazonas é o estado que detém a porção de Floresta Amazônica mais bem preservada não se sustenta diante das violências sofridas pelos principais responsáveis por manter a Amazônia em pé: os povos indígenas. O Amazonas ocupa o primeiro e o segundo lugares em três das categorias de violência mapeadas pelo Relatório Violência contra os Povos Indígenas – 2022, divulgado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) na semana que passou.
O estudo classificou os dados em categorias de violência em relação ao patrimônio, contra a pessoa e por omissões do poder público, onde constam dados relativos a suicídio e mortes na infância. Os números expõem as extremas vulnerabilidades às quais as populações indígenas do país estiveram expostas durante os quatro anos de desgoverno Jair Bolsonaro na Presidência da República. Com a maioria dos estados da Amazônia Legal governada por aliados do ex-presidente, a situação ficou ainda pior para os povos originários. O que aconteceu com os indígenas do Amazonas reflete bem o resultado dessa política desastrosa.
A morte de crianças indígenas de 0 a 4 anos no estado é alarmante: alcançou a marca de 1.014 vidas perdidas em quatro anos. A quantidade está bem acima do segundo colocado, que é o vizinho estado de Roraima, com 607 mortes entre 2019 a 2022. O terceiro no ranking é Mato Grosso, estado do agronegócio, com 487 óbitos.
Símbolo do desmonte das políticas indigenistas promovido pelo governo Bolsonaro, a Terra Indígena Yanomami teve o registro da morte de pelo menos 570 crianças Yanomami em decorrência de desnutrição nos últimos quatro anos, conforme dados divulgados pelo Ministério dos Povos Indígenas, em janeiro.
O território, localizado entre Roraima e Amazonas, enfrentou a invasão sistemática de garimpeiros, que chegaram a somar mais de 25 mil pessoas dentro da terra indígena, o equivalente ao número de indígenas vivendo no local: 26,8 mil, segundo prévia do Censo de 2022 sobre a população indígena do país.
“Nosso sofrimento começa no útero da mãe por conta do mercúrio que está na água que hoje tomamos do rio contaminado. (…) Sinto muito pela perda do nosso povo. Morreram muitas crianças. Sinto muito pela perda de outros povos, todos sofremos igual”, afirmou a liderança Júlio Ye’kwana, presidente da Associação Wanasseduume Ye’kwana, povo que vive junto dos Yanomami na mesma terra indígena, durante a coletiva de lançamento do relatório, realizada na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Brasília, transmitida pelo canal do Cimi no YouTube.
No último dia 10 de julho, a Justiça Federal determinou que os governos federal e do Amazonas disponibilizassem pelo menos dois médicos pediatras e novos equipamentos de gasometria e ionograma ao Hospital de Guarnição de São Gabriel da Cachoeira, única unidade hospitalar do município para atendimento da população, composta por 90% de pessoas autodeclaradas indígenas. São Gabriel da Cachoeira possui a maior população indígena do Amazonas e do país. Segundo o Censo de 2010, o município tinha mais de 29 mil indígenas. Os dados do Censo 2022 ainda não apresentam a população indígena por estados ou municípios.
A sentença reiterou liminares concedidas em 2022, atendendo aos pedidos feitos pelo Ministério Público Federal (MPF) e Defensoria Pública do Amazonas (DPE/AM), que constataram falhas na estrutura predial, falta de equipamentos e ausência de profissionais médicos pediatras e neonatologistas. Na época em que a ação foi impetrada, identificou-se que todos os leitos de emergência estavam ocupados, principalmente por crianças indígenas de até um ano.
A maior parte das internações, segundo o MPF, são de indígenas do povo Yanomami com menos de dois anos de idade. As crianças são removidas das aldeias apresentando, entre outras doenças, casos graves de desnutrição e desidratação severa. Consta no processo que, em um período de seis meses, entre 2021 e 2022, foram registrados 49 óbitos de crianças que estavam hospitalizadas na unidade, e outras 40 foram transferidas em UTI aérea para Manaus.
A negligência do poder público no desenvolvimento de políticas para a segurança e o bem-estar das populações indígenas – tanto pelo governo federal, quanto o estadual – resultou em duas centenas de suicídios indígenas, a maior parte cometido por jovens, conforme o estudo do Cimi. No Amazonas, foram 208 casos entre 2019 a 2022. Em seguida aparece Mato Grosso do Sul (131) e Roraima (57). Sozinho, o Amazonas responde por 38.87% dos 535 casos de suicídios entre indígenas registrados em todo o país, número que pode estar subnotificado, conforme alerta o Cimi, diante do desmonte das instituições responsáveis pela coleta de dados ao longo do último quadriênio.
Das 795 mortes por assassinato que ocorreram durante o governo Bolsonaro, 163 foram no Amazonas, o equivalente a 20,5% dos casos, perdendo apenas Roraima, que teve 208 mortes violentas, seguido de Mato Grosso do sul, com 146 homicídios. É no estado do centro-oeste onde a perseguição e extermínio histórico do povo Guarani-Kaiowá é deliberadamente reconhecida. Juntos, Amazonas, Roraima e Mato Grosso do Sul respondem por quase dois terços (65%) dos homicídios de indígenas no período.
Isolando apenas o ano de 2022, o resultado se mantém: assim como nos três anos anteriores, Roraima registrou mais mortes (41), seguido de Mato Grosso do Sul (38) e Amazonas (30), segundo dados da Sesai, do SIM e de secretarias estaduais de saúde.
As múltiplas faces dos ataques aos indígenas
O projeto de destruição das políticas de proteção aos povos indígenas do governo Jair Bolsonaro não foi exclusivo do executivo federal. Surfando na onda bolsonarista, o governo do Amazonas enviou mensagem à Assembleia Legislativa, ainda no primeiro semestre de 2019, retirando R$ 65 milhões da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), previstos para o Orçamento Indígena, uma conquista dos povos indígenas do estado. De forma inédita, ela foi obtida em 2018 com a aprovação do Projeto de Emenda à Constituição (PEC), de autoria do deputado José Ricardo Wendling (PT).
A articulação, iniciada em 2017, culminou com a aprovação da PEC em 2018, fixando o mínimo de 0,5% da receita tributária do Estado exclusivamente para assistência, valorização cultural, geração de renda, organização e promoção dos direitos dos povos indígenas, o que elevaria o orçamento da Fundação Estadual dos Povos Indígenas (FEI) para R$ 65 milhões em 2019.
Os passos seguintes revelaram um projeto nada novo encabeçado pelo governador Wilson Lima, eleito com o discurso de ‘nova política’. Em 2019, o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) emitiu licença de instalação para construção da unidade de tratamento de gás e do terminal de liquefação da Eneva no Campo de Azulão, na bacia do Amazonas, ainda não explorada. O Amazonas já era grande produtor de petróleo e gás natural em terra, mas na Bacia do Solimões, por conta da infraestrutura para movimentação e processamento além do escoamento para Manaus.
A licença foi anunciada em setembro de 2019, mas o órgão já tinha emitido licença para a perfuração dos poços em 19 de julho. O projeto atendia aos interesses da empresa que obteve, em 5 de setembro, a autorização para construção da usina termelétrica (UTE) Jaguatirica II, de 132,3 megawatts (MW) de capacidade instalada, em Boa Vista, para onde a maior parte do gás é enviada.
De acordo com comunicado divulgado pela empresa à época, o investimento total estimado para a implantação do Complexo Azulão-Jaguatirica era de R$1,8 bilhão. Em setembro de 2021, a Eneva iniciou a produção comercial do campo de Azulão, como primeiro projeto a entrar em operação na região, após 20 anos de sua descoberta.
O licenciamento da operação de poços do campo de gás natural, assim como a realização das audiências públicas previstas no processo de licenciamento do projeto de produção e escoamento de gás do Complexo Azulão, chegou a ser suspenso pela Justiça Federal, atendendo a um pedido de Ação Civil Pública (ACP) da Associação de Silves de Preservação Ambiental e Cultural (Aspac) e a Associação dos Mura, representante de 190 famílias indígenas dos povos Mura, Munduruku e Gavião Real.
A Aspac e a Associação dos Mura assinaram o pedido para que a Justiça suspendesse aquelas audiências, alegando não terem sido ouvidas e consultadas, falta de ampla publicidade ao EIA, conforme determina a Resolução 237 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), e ameaças sociais e ambientais. Além disso, exigem que o processo seja feito via Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que se omitiu durante a gestão do governo Bolsonaro.
A empresa, junto com o governo de Roraima, reverteu a situação sob o argumento de risco de desabastecimento energético. O enredo ilustra o que o coordenador do Cimi, Roberto Antonio Liebgott, analisou durante a coletiva de divulgação dos dados de violência contra os povos indígenas.
“Havia roteiro programático do genocidio que começa com desterritorialização – que é o ato de impedir que se tenha acesso à demarcação e também de se explorar as terras demarcadas, além de impedir que se tenha a possibilidade de acessá-las, de usufruir mesmo das demarcadas, diante de tanta invasão, exploração madeireira e garimpo. A segunda parte do roteiro é a desconstrução dos direitos com a desestruturação de tudo”.
O projeto mais recente do governo do Amazonas contra os povos indígenas é o posicionamento favorável à exploração irregular de potássio dentro da Terra Indígena Soares/Urucurituba, localizada no município de Autazes (a 113 quilômetros de Manaus). Atualmente, o Projeto Potássio Autazes, encabeçado pela Potássio do Brasil, está em fase de licenciamento ambiental. O empreendimento já possui a Licença Prévia (LP) e aguarda a Licença de Instalação (LI), a ser emitida pelo Ipaam.
Um estudo antropológico anexado ao processo que determinou a suspensão das operações até a conclusão dos levantamentos para demarcação da terra indígena aponta elementos comprobatórios da ocupação de povos tradicionais daquela região com registros documentados desde 1838.
Em junho, durante a 1ª Assembleia Geral dos Governadores da Amazônia Legal, em Cuiabá, o governador Wilson Lima saiu em defesa do empreendimento, e se declarou contra a demarcação da terra indígena. Dias antes, o líder do executivo estadual havia recebido o presidente da empresa Potássio do Brasil, Adriano Espeschit, na sede do governo, em Manaus.
Diante do lançamento da primeira tradução oficial da Constituição Federal em língua indígena feito no dia 19 de julho, pela presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Rosa Weber, em São Gabriel da Cachoeira, o governo do Amazonas sancionou a Lei de Cooficialização e de Instituição da Política Estadual de Proteção das Línguas Indígenas, criada pelo executivo estadual, que tornou oficial 16 línguas indígenas faladas no estado.
“A visão de que para os índios terem vida tinha que ser igual aos brancos resgatou a tese do genocídio dos militares da época de integração da Amazônia, vivenciada na ditadura.
“A desumanização faz com que o outro passe a ser visto não como sujeito de direitos, como gente, como pessoa, mas como aquele que pode ser eliminado e o que pode ser eliminado é bicho. A gente precisa lutar pra isso nunca mais aconteça”, afirmou Roberto Antonio Liebgott – missionário e Coordenador do Cimi
Violências amazônicas
A violência vivenciada nos estados do Amazonas e Roraima são representativos da realidade amazônica. Mais da metade dos casos de violência contra povos indígenas no Brasil ocorre no bioma, segundo o relatório do Cimi. Quase 86% das mortes de crianças indígenas de 0 a 4 anos ocorridas durante o governo Bolsonaro foram contabilizadas na região. Das 3.552 vidas perdidas de 2019 a 2022, 3.048 foram nos estados que integram a chamada Amazônia Legal.
O dado é revelador do desmonte das políticas voltadas a essa população. O pico ocorrido em 2019 (965) ocorreu durante a mudança na política de atendimento aos povos indígenas e com a retirada do programa Mais Médicos, conforme destacou a antropóloga responsável pelo relatório, Lúcia Rangel. “As crianças são as maiores vítimas de todo esse cenário de violência.”
Às vésperas da Cúpula da Amazônia, evento que reunirá os países da região para a construção de uma proposta conjunta de preservação do bioma rumo à COP 28, o atentado à vida dos povos que protegem o território pesa sob a efetividade da liderança do Brasil da agenda climática mundial. A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e outras 14 associações e entidades indígenas, além de seis organizações indigenistas, precisaram reinvindicar participação efetiva na Cúpula da Amazônia.
Uma carta, fruto de uma articulação em conjunto realizada em Brasília foi entregue às autoridades brasileiras e dos outros países amazônicos participantes (Peru, Bolívia, Guiana Equador, Colômbia, Suriname e Venezuela) solicitando a importância de ter vozes indígenas na proteção e conservação das florestas, e assinaram carta conjunta destacando que “discutir o futuro da Amazônia sem os povos indígenas equivale a violar nossos direitos originários e todo o trabalho que desenvolvemos em prol da vida humana no planeta”.
As organizações destacaram que, como “verdadeiros conhecedores e protetores das florestas, os indígenas ainda não têm garantida a participação efetiva nos processos de diálogo e proposição da Cúpula”. Além disso, manifestaram “preocupação em relação à ausência de reconhecimento de suas vidas e papéis desempenhados na manutenção e defesa das florestas”. A OCTA, que organiza a Cúpula, participou do encontro em Brasília na condição de convidada, mas não se manifestou quanto à mudança na programação para inclusão das vozes indígenas.
A Amazônia Legal concentra mais de 55% da população indígena do Brasil e continua de fora das negociações do futuro climático no mundo. Enquanto isso, busca-se soluções para frear o aquecimento global, aqueles que conhecem a floresta são exterminados ou violentados em seus direito à vida, o que demonstra a fragilidade da política de preservação da floresta. Mais de 59,6% dos crimes de violência por omissão do poder público ocorreram na região em 2022, assim como 53,2% dos crimes contra o patrimônio no mesmo período, segundo dados do Cimi.
Em todo o Brasil, 218 Terras Indígenas, em 25 estados, foram afetadas pela violência contra o patrimônio, que significa ataques ao território. “O que vimos foi uma necro máquina estatal atuando, situação que é comum em várias partes do mundo, mas no Brasil é muito forte. Aqui, além de matar é necessário colocar essa máquina para destruir tudo”, afirmou Lúcia Rangel, antropóloga responsável pelo relatório.
Entre os 795 homicídios registrados no país, 60,88% dos assassinatos ocorreram na região ocupada pela Floresta Amazônica, onde também ocorreram 59,62% dos suicídios que foram notificados entre indígenas no país de 2019 a 2022. “O governo Bolsonaro, que teve a adesão de parte do Judiciário, do parlamento e de outros setores, estabeleceu a concepção de que os crimes contra as minorias e contra a natureza eram necessários para fazer a economia crescer”, afirma trecho de destaque do documento.
Além das questões relacionadas com a desestruturação das políticas de proteção às populações tradicionais da floresta implementadas pelo bolsonarismo, elas também são impactadas pela violência ocasionada pela chegada das facções criminosas oriundas do Sudeste. Aldeias do Acre e do Amazonas estão entre as mais vulneráveis à ação destes grupos criminosos. Além de crimes tradicionais típicos da fronteira – como o narcotráfico – as facções também passam a atuar na prática de crimes ambientais, como garimpo, a grilagem e o roubo de madeira.
O outro lado
Varadouro solicitou resposta do governo do Amazonas e do Ministério dos Povos Indígenas, mas não obteve retorno até a publicação da matéria.