Túmulo sem velas

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Em março de 2007 encontrei em Brasília o José Alves Mendes Neto, o Zuza, irmão mais novo de Chico Mendes com o qual puxei uma longa conversa sobre a vida de sua família no seringal. Eu queria saber como era o jovem Chico antes de se tornar o grande líder dos anos 70/80, assassinado em 1988. Mais que irmão, Zuza se tornara seu companheiro de lutas em defesa da floresta e do extrativismo, e tal qual Chico Mendes, vivia ameaçado de morte.

Zuza não se fez de rogado para falar com emoção da família marcada pela tragédia. Disse que Chico Mendes, aos 16 anos, tornou-se “pai e mãe” de uma escadinha de irmãos menores; a mãe, Iraci Lopes Mendes, pediu-lhe isso ao falecer aos 42 anos em circunstâncias dramáticas.

A tragédia acompanhou a família Mendes o tempo todo. O pai, Francisco, deficiente de uma perna, tinha dificuldade para percorrer as “estradas” de seringa no fabrico da borracha. E sua situação piorou quando, ao cortar um cipó fino com terçado afiado, quase decepou o joelho da outra perna sã. Desde então, suspendeu o trabalho na seringa, permanecendo, apenas, no cultivo de um pequeno roçado com a ajuda de um dos filhos.

Raimundo, mais novo que Chico Mendes, aos 14 anos era o xodó da mãe e ajudante do pai na agricultura de subsistência. Mas queria mesmo era ser seringueiro. Insistiu tanto, que o pai pediu ao Chico que abrisse para ele uma “estrada” – caminho precário aberto na mata para ligar cerca de 150 árvores, das quais o seringueiro extrai o látex.

Na véspera da estreia da nova atividade, entretanto, o pai deu outra tarefa a Raimundo: era preciso matar um porco para tirar a banha usada como óleo de cozinha, depois levar comida para o grupo de seringueiros que, juntamente com Chico Mendes, se encontrava acampado na mata fazendo a limpeza de outras “estradas”.

Na época, Zuza tinha 7 anos de idade e vivia grudado a Raimundo. Os dois combinaram sair para o primeiro “corte” de madrugada, escondido do pai, a tempo de retornar no meio da manhã, antes da matança do porco. Assim, deixaram o barraco de mansinho, embrenhando-se na mata. Raimundo se vestiu a caráter: bermuda encaronchada, sapatos de seringa, facão na cintura, poronga na cabeça e uma espingarda calibre 12, carregada, atravessada no ombro.

Lá na frente, num descampado conhecido por Taquara, os dois encontraram caído no caminho um tronco imenso. Foi preciso que Raimundo arriasse a espingarda para dar a mão ao pequeno Zuza. Com pouca luz e a emoção de se tornar seringueiro, deixou a arma escorregar sobre o tronco. A arma disparou e atingiu sua cabeça.

“Foi horrível!”- lembra Zuza, que se assustou com o tiro repentino, a fumaça e o corpo de Raimundo caindo sobre si. Quando se refez do susto e procurou sair de baixo do irmão, apalpou sua cabeça e só encontrou miolos e sangue. Correu então aos gritos pela mata, no escuro, mas por sorte cruzou com o grupo de Chico Mendes que se desesperou também. “O que aconteceu? Cadê o Raimundo?” – até que Zuza respondeu: “Raimundo morreu”!

Chico pediu a um dos companheiros que o levasse à casa e voltasse com uma rede para juntar e transportar o cadáver do irmão. Meu Deus! -pensou – dona Iraci não ia suportar tanta dor! Ela que tivera 19 filhos, quatro dos quais mortos ao nascer, estava grávida de três meses do vigésimo. Raimundo era o mais querido. Não ia suportar!

Não suportou. Ao receber o filho morto, ajoelhou-se no terreiro da casa, olhou para o céu e suplicou: “Se existe um espírito, um Deus, peço que me leve com meu filho. Não quero mais viver”. Desde então, passou a morrer um pouco a cada dia. Despedia-se de um e de outro, dava conselhos…Impediu que chamassem a parteira de costume para cuidar dela e não deixou cortar a peça de murim para fazer fraldas pro filho que ia nascer. “Vai estragar a fazenda”! – dizia resoluta.

Chico chorava ao ver a mãe escolhendo a morte. Mas tentaria salvá-la. Era tão nova, tão bonita e terna… Ia levá-la para a cidade, numa rede, para atendimento médico. Começou uma peregrinação de colocação em colocação, juntando amigos para carregar a mãe pelo mato (não tinha estrada) até Xapuri. A mãe, entretanto, implorava: “Filho, não se afaste de mim. Preciso lhe dar conselhos antes de partir”. O pai, em pé encostado à parede do quarto, também chorava, aquela e outras dores, mas resignado dizia: “Sua mãe vai morrer mesmo, Chico”.

Chico ainda buscaria socorro numa última colocação, quando a mãe lhe chamou: “Vem cá, Chico, me abraça”. Os dois permaneceram abraçados, chorando por longo tempo. Foi quando ela disse: ”Chico, se acalme. Você terá que ser pai e mãe dos irmãos pequenos. Seu pai não pode mais trabalhar. Não deixe que eles passem fome”.

Mesmo transtornado, ele seguiu em prantos em busca de mais carregadores. Quando retornou, dona Iraci tinha morrido. Ele a viu inerte, com sua tez branca, os cabelos loiros e cacheados, sem a voz doce e conselheira que repetia, repetia… Era a imagem da mãe resignada de seringal que, em situação inesperada, emparelha fragilidade e força, ternura e frieza, escuridão e luz.

Assim Chico se fez homem, completamente determinado: aprendeu a ler, pensar e agir. Não somente para criar os irmãos, mas também liderar os “empates”, defender a floresta, criar as reservas extrativistas, garantir a permanência dos seringueiros acreanos em suas colocações, avisar a quem quisesse ouvir que, no Acre, existe uma sociedade diferente, amiga da natureza, desejando o bem do universo.

(Foto: Lourenço Chacon)



Túmulo ignorado

Em abril de 2016. visitei o seringal Cachoeira onde familiares e companheiros de Chico Mendes vivem em paz, usufruindo o legado que o amigo e parente imprescindível deixou. Um deles, o primo Nilson Mendes, que nos acolhia como guia, parou no meio da estrada e apontou:

– Alí, depois daquela cerca de arame, nesse descampado, tá vendo um túmulo no meio do mato? É a mãe do Chico! Ela e o filho Raimundo estão enterrados ali!

Meu Deus! Pensei logo na história que o Zuza me contou em Brasília e senti uma profunda tristeza. Os dois, Iraci e Raimundo, merecem uma lápide melhor, com muitas velas acesas, muitas visitas que venerem vidas tão amorosas… Ah! Imagino o poeta Mário de Andrade, ajoelhado, a rezar os versos: “Quero ver si consigo/Não passar na sua vida/numa indiferença enorme”…



Elson Martins, jornalista e escritor acreano, nascido no Seringal Nova Olinda, em Sena Madureira, criou o Varadouro na década de 1970. Foi correspondente do jornal O Estado de São Paulo, integrando a equipe da sucursal da Amazônia. Também trabalhou na imprensa do Acre, Amapá e Pará. Escreve atualmente nas páginas digitais do novo-velho Varadouro.

Contato: almanacre@gmail.com

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