Abri os olhos na noite escura da ditadura, e fui distribuir panfletos nas periferias de Brasília, onde tinha me instalado, aos 17 anos, para estudar. O movimento estudantil foi minha formação. Nas férias, ou nos períodos mais duros da repressão, eu vinha ao Acre e me juntava aos jovens artistas, pichadores de muros, jornalistas, quem estivesse na luta. Numa dessas idas e vindas, cheguei à redação de um jornal alternativo, o Varadouro, rebelde e artesanal, onde encontrei o profeta ranzinza Luís Carvalho e outros jovens liderados pelos experientes editores Elson Martins e Silvio Martinello, passados na casca do alho, fazendo o impossível e improvável trabalho de dar voz na cidade aos povos silenciados na floresta. Fiz uns desenhos, alguma crônica de iniciante, ajudei na redação de uma ou outra nota de pé de página.
Quando voltei de vez, no final de 1980, o jornal estava parado e seus principais redatores tentavam dar qualidade à imprensa diária e, ao mesmo tempo, sobreviver naqueles tempos duros. Participei da breve retomada das edições no início da nova década, junto a Marco Antonio Mendes, Saulo Petean e outros batalhadores da hora. E comecei a andar pelas periferias em formação da cidade, onde se juntava uma leva de gente que vinha da floresta desmatada e queimada. Não tardou para que fosse andar pelos varadouros da floresta, às aldeias e aos seringais, levado pelos txais Terri Aquino e Antonio Macedo.
E andamos, meninos, muito mesmo. E conhecemos tanta gente, tantas lutas, tantos sonhos, que não cabem nas páginas de todos os jornais. E fomos juntando tudo pra construir uma utopia amazônica que chegamos a ensaiar na virada do milênio, depois que os poderes da política finalmente pareciam honrar o sangue de Wilson Pinheiro, Chico Mendes e tantos que haviam tombado na resistência.
Foi um sonho breve, logo o fogo voltou a cobrir a terra de cinzas. A história da tragédia todos conhecem, é recente. Mas a fumaça obscurece as vistas e as consciências. E para muita gente convém não ver, nem lembrar.
A pergunta é inevitável: e agora?
Os tempos mudaram, e de tal forma, que a maioria das pessoas já não reconhece, na vida de hoje, a continuidade e o desdobramento normal do passado. E mais: uma quantidade cada vez maior de gente simplesmente não lembra de qualquer passado, ou porque o renega e prefere esquecê-lo ou porque passou por algum tipo de “reboot” (lavagem cerebral eletrônica) ao transferir sua identidade para um novo sistema operacional: enricou, mudou de igreja, criou um perfil nas redes sociais, entrou para um partido ou grupo político, trocou o emprego por um negócio, enfim, mudou de vida e já não é mais a mesma pessoa.
Há também grandes mudanças na coletividade, a emergência de situações que no jargão neo-contemporâneo se chama de “disruptivas”, que aceleram e intensificam essa fragmentação do tempo. Assim, o povo de um lugar que mudava para permanecer sempre igual, como o Acre, agora já não sabe nem quer saber o que era, como era, se feliz ou infeliz, antigamente. Aliás, já nem existe “antigamente”.
Outra característica importantíssima nos fragmentos de tempo que ora vivemos é a total bagunça na comunicação. Tivemos uma fugaz ilusão de termos entrado na chamada “era da informação”, e em poucos anos tudo explodiu, ou derreteu, desde os mais poderosos meios de comunicação até as pequenas emissoras e jornalecos da província, varridos para os escondidos da internet, onde ter 5 milhões de “seguidores” é conta pobre para sub-celebridades. Já ficou velho falar em fake news e narrativas. Resumindo, vivemos a era da desinformação. Simplesmente ninguém sabe de nada, ao menos nada do que está acontecendo de vera, na real, se é que ainda existe verdade e realidade.
Devo, entretanto, ser sincero e confessar que andei ouvindo os passarinhos. Eles dizem que lá no Brasil algumas coisas estão despiorando, ainda não dá pra dizer melhorando. Baixou o preço do gás e dos alimentos, aumentou o salário mínimo e a transferência de renda para famílias mais pobres, diminuiu a inflação… enfim. Mas o principal é que desacelerou o desmatamento na Amazônia e as terras indígenas voltaram a ser demarcadas. Todos os índices são importantes, tudo bem, mas território e floresta, isso é a realidade real, pelo menos para quem vive nas periferias do mundo virtual. Terra, água e ar, um planeta que pode continuar sendo habitável.
Nada está garantido, pois o negacionismo continua forte e o “negocionismo” mais ainda. A fazendeirada brega que comprou ou grilou metade do Brasil, após quatro décadas de bilionários subsídios estatais, ascendeu ao céu do capitalismo. Está sentada à direita dos pastores midiáticos, protegida por anjos armados das milícias nacionais e estaduais. E vai tangendo o gado com muita propaganda e música ruim.
Enfim, se o Brasil voltou, como diz o mantra do novo velho governo, veremos. Mas o Varadouro está voltando, isso é real simplesmente porque é essencial. Curtam e compartilhem ou saiam da frente. Pra mim, será no mínimo interessante voltar a conversar com quem ainda esteja disposto a ler mais que 240 caracteres. Assunto não há de faltar e, quando faltar, conversaremos sobre o tempo. Caminhando e conversando, veremos aonde esse novo velho Varadouro nos levará.
Toinho Alves, jornalista e escritor acreano. Fez parte do jornal Varadouro na década de 1980
caissame@gmail.com