YANOMAMI: DESAMPARO NO AMPARO

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Ida às cidades do Amazonas para sacar benefícios sociais deixa Yanomami expostos a todo tipo de violência

Indígenas Yanomami e outros povos em fila de agência fluvial da Caixa em Barcelos; enquanto estão na cidade, sofrem todo tipo de privações de direitos (Foto: Associação Parawami Yanomami)


Ao buscar o saque de seus benefícios em cidades do Alto Rio Negro, indígenas do Alto Rio Negro ficam expostos a todos os tipos de vulnerabilidade e violência



Steffanie Schmidt
Dos Varadouros de Manaus


O RECENTE contato vem marcado no nome registrado nos documentos oficiais expedidos pelos cartórios e no quinhão que lhes cabe na chamada ‘civilização’. Não é raro encontrar indígenas Yanomami com nomes que representam apelidos pejorativos entre ‘os brancos’. Tampouco são convidados a participar do espaço público e acessar dignamente o direito que lhes é devido, mesmo representando 12% dos beneficiários do programa Bolsa Família disponibilizados na cidade de Barcelos, localizada às margens do rio Negro, interior do Amazonas.

Aproximadamente sete mil indígenas da etnia vivem na porção amazonense da Terra Indigena Yanomami, que também abrange o território de Roraima, de acordo com dados preliminares do último Censo do IBGE. Todos os meses, uma média de 500 Yanomami saem de suas aldeias e deslocam-se para a sede urbana do município para realizar o saque do Bolsa Família, benefício concedido em levar em consideração as especificidades dos povos indígenas.

Sem ter onde permanecer na cidade, e nem ter garantia de recursos para custear a viagem de retorno às aldeias, que pode durar até oito dias de barco, os Yanomami ficam acampados em locais periféricos da cidade, sem infraestrutura adequada e em situação de vulnerabilidade social.

O ultimo dado disponibilizado pelo Portal da Transparência, do governo federal, relaciona apenas 279 indígenas Yanomami com o valor disponível para saque no mês de maio, um total de R$ 118.414,00. Em todo o município, o valor disponibilizado foi de R$ 1.057.357 para 2.892 pessoas, número que representa 11% da população local.

Com pouca fluência na língua portuguesa, os Yanomami apresentam dificuldade também para a compreensão de valores praticados no comércio, o que vem sendo explorado há pelo menos uma década na cidade, segundo relata petição do Ministério Público Federal (MPF) à União para atendimento imediato de mais de 500 indígenas que estiveram aglomerados e em situação de vulnerabilidade, no início de junho, em Barcelos, para realizar o saque do Bolsa Família e serviços de registro civil. A falta de uma adaptação às especificidades das populações indígenas da Amazônia por parte da principal política pública de redução de desigualdade do país, o Bolsa Família, acaba por os deixar em situação de extrema vulnerabilidade.

O acampamento em condições impróprias em Barcelos pode durar mais de trinta dias porque segue o calendário do próprio Governo: a falta de informação adequada à realidade Yanomami os escraviza até que consigam o recurso que lhes garanta o retorno para casa. Uma viagem subindo o rio, no período de oito dias numa embarcação de motor simples (de cinco HP), pode consumir até 120 litros de gasolina.

Em Barcelos, o preço médio da gasolina varia entre R$ 6,50 a R$ 7,00. Ao todo, levando em consideração a necessidade de se também comprar óleos para os motores, a viagem de volta às aldeias Yanomami pode chegar perto dos mil reais – valor bem acima do que recebem do próprio Bolsa Família.

Para além das questões econômicas, o preconceito contra os Yanomami sempre esteve presente entre os moradores de Barcelos e Santa Isabel do Rio Negro, municípios de alta concentração deste povo no Amazonas, onde está cerca de 30% da Terra Indígena Yanomami.

Essa discirminação é reforçada pela histórica negligência dos poderes público municipal e estadual que atuam diretamente na localidade. É comum ver que mesmo aqueles moradores de Barcelos que carregam em suas fisionomias traços marcadamente indígenas, refiram-se aos Yanomami como “preguiçosos” e “índio”, como um “não cidadão”.

Coordenador da Associação Serviço e Cooperação com o Povo Yanomami (Secoya), Silvio Cavuscens acompanha essa realidade há mais de 30 anos. Esse tipo de tratamento sedimentou uma mentalidade de favor e não de direito entre os Yanomami. O trabalho de organização política encabeçado pela Secoya na região vem ao encontro dessa necessidade.

Atualmente, a entidade caminha para o assessoramento na criação da segunda associação Yanomami na região, a Parawami, que conseguiu reunir representantes de 24 das 27 aldeias do rio Demeni e Aracá, o que representa uma população de aproximadamente três mil indígenas.

A primeira foi a Associação Kurikama, que representa aproximadamente 20 aldeias do rio Marauiá, em Santa Isabel do Rio Negro, município vizinho a Barcelos. Os Yanomami somam mais de 2,5 mil pessoas nessa localidade.

“A grande dificuldade é que são problemas recorrentes. As políticas públicas não se orientaram para a resolução deles. É sempre apagando o incêndio, coisas emergenciais, e ponto final. Agora teve um barco que subiu para resolver algumas questões, mas não está no escopo dessa ação explicar como tudo funciona, o porquê de muitos entrarem em empréstimos que nem sabiam que existia, então, essa é, no fundo, apenas uma tentativa do banco resolver sua própria questão”, afirma Cavuscens ao Varadouro.

A aglomeração na periferia das cidades, praças e mesmo na sede da Funai, que permanece sem coordenador na região, não oferece condições de saúde, higiene e dignidade ao Yanomami da região do Alto Rio Negro, o que acaba por puxar outros problemas como violência, conflitos, alcoolismo e prostituição.

“Não se pode ficar somente na judicialização, que é fruto do trabalho árduo dos procuradores do MPF e promotores do MPE comprometidos com a causa. O município tem uma gestão favorável ao governo do estado que não tem política favorável aos indígenas, não dão apoio, não se comprometem e quando falam que vão fazer, não cumprem. No fundo, não querem que os indígenas se organizem”, afirma Cavuscens.

O fato gera uma mobilização constante de representantes de organizações indígenas e indigenistas em uma articulação corpo a corpo com cada um dos órgãos envolvidos com o atendimento aos Yanomami, incluindo Receita Federal, Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), Secretaria Municipal de Assistência Social, além de serviços de saúde e educação do município e do estado do Amazonas.

O coordenador da Secoya relata que em Barcelos há uma única lotérica e uma agência pequena da Caixa Econômica, com dois guichês que não conseguem atender sequer a demanda da cidade. Nesse contexto, os indígenas são vistos pelos moradores da cidade como estrangeiros que tumultuam o que já era ruim.

“O município ainda não se preocupou em ter um espaço para receber de forma decente as comunidades ribeirinhas e indígenas que estão sempre na sede da cidade, e têm mais contato, até pela localização mais próxima. Eles têm mais articulação, sabem como transitar naquele meio urbano, quais são os meandros das instituições, mas precisam ficar alguns dias na cidade. Imagine em relação aos Yanomami, que além dos problemas sociais ligados à necessidade de afirmação identitária, enfrentam preconceito e falta de assistência à saúde, à educação e têm acesso à informação de forma precarizada”, explicou o indigenista.

O caso dos Yanomami do Alto Rio Negro é apenas um entre inúmeros que acontecem entre as populações indígenas da Amazônia. Além de enfrentarem situações degradantes pelas periferias e às margens dos rios, são vítimas de extorsão de comerciantes inescrupulosos, que acabam por reter os seus cartões bancários do Bolsa Família ou INSS. Os indígenas acabam por ficar reféns de “cadernetas” impagáveis nestes comércios.

Neste momento de reconstrução da política indigenista por parte do governo Lula, representada pela criação do Ministério dos Povos Originários, cabe às autoridades de Brasília repensar a forma de como as ações de combate à fome, por meio de programas de transferência de renda, podem beneficiar as populações indígenas – respeitando-se a autodeterminação de cada povo, garantindo a proteção aos seus direitos e evitando situações como as vividas pelos Yanomami do Alto Rio Negro.


O que diz a Caixa Econômica

Em resposta ao Varadouro, a assessoria da Caixa Econômica informou que, por meio do programa Missão Caixa, realiza desde fevereiro, atendimento especializado aos povos indígenas em Roraima e no Amazonas, além de implementar medidas para ampliar a assistência bancária na região.

“Em função da alta demanda no mês de junho/2023, em Barcelos (AM), o banco reforçou a equipe de empregados no município que, em parceria com a prefeitura e o CRAS, realizaram atendimentos entre 19 e 30 de junho. A Caixa ampliou ainda a permanência da Agência-Barco Chico Mendes em dois dias. A embarcação permaneceu naquela localidade entre os dias 19 e 23/06”, diz a nota da assessoria.

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