À DERIVA NAS ÁGUAS DA INDIFERENÇA

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Há algo de dolorosamente familiar nesses alagamentos que se repetem ano após ano em Rio Branco e nos municípios do Acre. Como se cada inundação fosse um capítulo previsível de um livro cuja trama desoladora é escrita pelas águas revoltas dos rios que há tanto tempo conheço. Desde 1972, venho testemunhando a crescente aflição das enchentes, um espetáculo que, ao contrário do que se poderia esperar, não perde sua intensidade com o passar dos anos.

O culpado, como uma cicatriz que se recusa a sarar, é a expansão desenfreada das construções nas proximidades de rios e igarapés. O aumento da população, que outrora seria um sinal de prosperidade, agora é um fator contribuinte para esses desastres não naturais. As margens dos rios, que deveriam ser respeitadas como áreas de risco, foram transformadas em terrenos de sonhos afogados e esperanças diluídas nas águas barrentas.

Os governos, ao invés de serem os guardiões responsáveis, parecem repetir incansavelmente a mesma ladainha a cada tragédia iminente. “Vamos retirar essas populações das áreas de risco”, prometem, enquanto as águas começam a subir e o desespero se instala nas casas que, por mais que tentem, não conseguem resistir ao avanço implacável dos rios. Pura balela, digo eu, testemunha desamparada da negligência governamental.

Neste ano, a alagação parece querer bater recordes, como se a natureza quisesse nos lembrar da impotência humana diante de suas forças. Os rios do Acre, de semblante indiferente, não perdoam. Rio Acre, Juruá, Xapuri, Iaco e tantos outros, como juízes impassíveis, condenam as comunidades ribeirinhas a uma rotina cíclica de perdas e desamparo.

O atual prefeito, Tião Bocalom, inseriu-se na dança macabra das promessas políticas. “Construirei 1001 casas para as pessoas atingidas pela cheia do ano passado”, anunciou ele, como se fosse o portador de uma solução há muito esperada. Mas entre as linhas de suas palavras, percebo a triste realidade: pura conversa engana tolos. Uma estratégia calculada para angariar votos nas eleições passadas e nas que estão por vir, enquanto as águas separam famílias e destroem lares.

E assim, ano após ano, a cena se repete. Nada muda. O povo, confinado à sua sina de sofrimento sazonal, é deixado à própria sorte. A indiferença persiste, enraizada como as árvores que um dia embelezaram as margens dos rios, mas que agora testemunham a destruição que as águas trouxeram consigo.

As eleições municipais se aproximam, e a lembrança é uma ferida aberta. “Não esqueçam, as eleições municipais estão chegando”, ecoa como um lembrete amargo da falta de poder que temos sobre nosso destino. Enquanto as urnas se enchem de votos, as águas continuam a subir, indiferentes aos anseios e esperanças de um povo que se vê à deriva nas águas da indiferença.

Nascido nos seringais de Xapuri, Pitter Lucena é jornalista e escritor. Deu os primeiros passos nos varadouros das letras no início da década de 80, quando estudou Teologia dentro do projeto das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica no Acre. Em 1985 entrou para o mundo do jornalismo. Trabalhou como repórter nos jornais Folha do Acre, O Rio Branco, A Gazeta e A Tribuna, além das emissoras de TV. Em 2003 ganhou o prêmio de jornalismo José Chalub Leite por reportagens sobre o esquadrão da morte no Acre. É bacharel em Comunicação Social, jornalismo, pelo Instituto de Educação Superior de Brasília – Iesb.

pitter.lucena@gmail.com

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