O contexto
No dia 18 de outubro de 2023, foi publicada a notícia da apreensão de 207 quilos de cocaína de alta pureza – avaliada em quase meio milhão de dólares – que estavam escondidos em um caminhão que viajava do Peru ao Brasil. A droga teve origem no Peru, e tinha como destino o mercado brasileiro, passando pelo território boliviano. Uma triste relação trinacional do crime organizado.
Em 23 de janeiro deste ano foi realizado um webinar chamado “Painel sobre o Impacto Ambiental do Tráfico de Drogas nas Américas”, patrocinado pela Associação de Estudos Latino-Americanos (LASA, na sigla em inglês), do qual participaram pesquisadores da Bolívia, Colômbia e Peru. Curiosamente, o Brasil esteve ausente do debate, mesmo sendo o primeiro país com mais consumidores de cocaína na América Latina, segundo vários meios de comunicação, com dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC).
É sabido que esses três países, grandes produtores de cocaína, possuem extensas fronteiras com o Brasil, onde ocorre o tráfico de drogas e cuja rota mais conhecida é a chamada “rota caipira”, que vai do Peru e da Bolívia, passa pelo Paraguai e termina no Brasil. A questão, então, deveria considerar não apenas os grandes produtores de cocaína da região, mas também o grande mercado consumidor onde esta grande produção vai parar.
A folha da coca e a cultura nos países produtores
A folha de coca é uma planta sagrada para as culturas andino-amazônicas, seu consumo é uma prática ancestral, não apenas como medicamento, mas também como identidade cultural em cerimônias religiosas, trabalhos comunitários e momentos de recreação. Assim, a dimensão religiosa ou ritual da folha de coca permite-nos estabelecer laços profundos com a natureza.
Na Colômbia a folha de coca é considerada patrimônio cultural, o mesmo no Peru. Na Bolívia, a folha de coca é legal com 22.000 hectares de cultivo permitidos pela Lei Geral da Coca (906), que a revaloriza como patrimônio cultural e recurso natural renovável.
Esta lei também protege a “folha sagrada” da sua utilização para fins ilícitos.
Apesar disso, a Organização das Nações Unidas (ONU) estima que cerca de 64% de toda a coca produzida na Bolívia é vendida em mercados não autorizados, dominados pelo tráfico de cocaína.
De onde vem essa coca ilegal?
Segundo versões oficiais, na Bolívia foram erradicados 10.302 hectares de excedente de coca em 2023, sendo entendido como “excedente de coca” aquele que ultrapassa a cota da “coca legal”, tanto na produção quanto na extensão da área cultivada.
Grande parte desse excedente de coca – destinado ao tráfico de drogas – foi erradicado em áreas protegidas da Amazônia boliviana: o Parque Nacional Carrasco, o Tipnis (Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure), o Parque Nacional Amboró e a Reserva Florestal Choré. Só nessas quatro unidades de conservação, foram erradicados 10,49% do que foi eliminado em todo o território boliviano.
Assim, a produção da folha de coca e a sua posterior transformação em cocaína é realizada em grande parte em áreas ambientais de elevada biodiversidade.
Impacto ambiental da produção da cocaína
A transformação do excedente de coca em cocaína é um processo químico que extrai o alcalóide da planta, misturando primeiro a folha triturada com água e querosene ou outros, obtendo o sulfato ou pasta base. A cocaína, propriamente dita, é o cloridrato de cocaína obtido a partir da pasta e da adição dos chamados “precursores” ou insumos como éter, ácido clorídrico, ácido sulfúrico, etc.
A grande quantidade de água utilizada nesse processo contamina não só o solo onde é descartada, mas também mananciais, córregos e rios, principalmente na Amazônia. O mesmo acontece com o desmatamento para construção de laboratórios, estradas de penetração, pistas de pouso clandestinas e mudanças no uso do solo.
Além disso, observam-se entradas ilegais nessas áreas protegidas para fins de colonização e expansão das fronteiras agrícolas e pecuárias – e certamente da expansão do tráfico de drogas. Diante disso, surgem movimentos ambientalistas que lutam para acabar com esses crimes ambientais, e se concentram principalmente na revogação das chamadas “leis incendiárias”, que legalizam as queimadas e a extração de madeira em benefício dos colonos e, em última instância, dos potentados agroindustriais do Oriente Boliviano.
Povos indígenas e a busca por soluções
Na Bolívia, desde a aprovação da Nova Constituição Política do Estado (2009), os povos indígenas tornaram-se Nações dentro de um Estado Plurinacional, chegando estas a um número de 36 Nações.
Para o consumo cultural da folha de coca nessas nações, a lei permite, como vimos, o cultivo de 22 mil hectares, todo o resto é excedente e vai para o tráfico de drogas.
Que solução pode ser proposta para minimizar o “mau uso” da folha sagrada?
Nas palavras de uma estudante boliviana na França:
“Quando cheguei à Europa, em abril de 2007, constatei que o aspecto cultural e medicinal da folha de coca era desconhecido da grande maioria do público. Tudo estava e continua associado à cocaína, e isso afeta negativamente a imagem da folha de coca.“
E é este critério global de estigmatização da coca e do seu uso que impede, dizem os produtores e consumidores indígenas, o seu desenvolvimento como mercadoria e a sua concorrência no mercado legal de produtos naturais e orgânicos.
Um fabricante de chá de coca assume os mesmos critérios:
“Se pudéssemos exportar legalmente, os produtores de coca aumentariam os seus rendimentos, o que não acabaria com o tráfico de drogas, mas seria mais difícil e mais caro para os traficantes de drogas obterem coca.“
Assim, para as nações indígenas da Bolívia, a “desnarcotização” da folha sagrada de coca a nível global poderia neutralizar o seu uso criminoso e – sendo consistentes e acompanhando-as na sua luta – poderíamos também opor-nos eficazmente a situações como a descrita nesta triste relação trinacional do crime organizado.
Guillermo Rioja-Ballivián é antropólogo social, é professor na Universidade Amazônica de Pando e membro da iniciativa MAP, que reúne pesquisadores e acadêmicos da tríplice fronteira MAP: Madre de Dios (Peru), Acre (Brasil) e Pando (Bolívia).
Texto em espanhol:
Narcotrafico y medio ambiente en nuestra Amazonia Trinacional
El contexto
El día 18 de octubre de 2023 se publicaba la noticia de la incautación de 207 kilos de cocaína de alta pureza – valorados en casi medio millón de dólares – que estaban escondidos en un camión que hacía el recorrido desde Perú a Brasil. La droga tenía su origen en Perú y estaba destinada al mercado brasileño, pasando por territorio boliviano. Triste relación trinacional del crimen organizado.
El 23 de enero de este año se realizó un webinar denominado “Panel sobre impacto ambiental del tráfico de drogas en las Américas” patrocinado por la Asociación de Estudios Latinoamericanos (LASA por sus siglas en inglés) donde participaron investigadores de Bolivia, Colombia y Perú. Curiosamente Brasil estaba ausente del debate, siendo que es el primer país con más consumidores de cocaína de América Latina, según varios medios informativos con datos de la Oficina de las Naciones Unidas contra la Droga y el Delito (ONUDD)
Es notorio que estos tres países, grandes productores de cocaína, tienen extensas fronteras con Brasil, por donde se realiza el narcotráfico y cuya ruta más conocida es la llamada “ruta caipira”, que va desde Perú y Bolivia, pasa por Paraguay y termina en Brasil. El tema, entonces, debería contemplar no solo a los grandes productores de cocaína en la región, sino también al gran mercado de consumidores a donde va a parar esta gran producción.
La hoja de coca y la cultura en los paises productores
La hoja de coca es una planta sagrada para las culturas andino-amazónicas, su consumo es una práctica ancestral, no solo como medicina, sino también como identitario cultural en ceremonias religiosas, trabajos comunitarios y momentos de esparcimiento. Así, la dimensión religiosa o ritual de la hoja de coca permite establecer vínculos profundos con la naturaleza. En Colombia la hoja de coca es considerada patrimonio cultural, lo mismo en Perú. En Bolivia la hoja de coca es legal con 22.000 has de cultivo permitidas mediante la Ley General de la Coca (906) que la revaloriza como patrimonio cultural y recurso natural renovable.
Esta ley, además, protege a la “hoja sagrada” de su utilización con fines ilícitos.
A pesar de esto, La Organización de Naciones Unidas (ONU) calcula que alrededor del 64 % de toda la coca producida en Bolivia se vende en mercados no autorizados, dominados por el tráfico de cocaína.
¿De dónde sale esta coca ilegal?
Según versiones oficiales, en Bolivia se erradicaron 10.302 hectáreas de coca excedentaria en 2023, entendiendo por “coca excedentaria” la que sobrepasa a la legal, tanto en producción como en extensión de cultivos.
Gran parte de esta coca excedentaria – destinada al narcotráfico – fue erradicada en áreas protegidas de la región amazónica boliviana: el Parque Nacional Carrasco, el Tipnis (Territorio Indígena y Parque Nacional Isiboro Sécure), el Parque Nacional Amboró y la Reserva Forestal Choré. Solo en estas cuatro áreas protegidas se erradicaron el 10.49% de lo eliminado en el territorio nacional.
De esta manera, la producción de la hoja de coca y su posterior transformación en cocaína se realiza grandemente en zonas ambientales de alta biodiversidad.
Impacto ambiental de la elaboración de cocaina
La transformación de la coca excedentaria en cocaína es un proceso químico que extrae el alcaloide de la planta, mezclando primero la hoja triturada con agua y queroseno u otros, obteniendo el sulfato o pasta base. La cocaína, propiamente dicho, es el clorhidrato de cocaína obtenido de la pasta y el agregado de los llamados “precursores” o insumos como el éter, el ácido clorhídrico, el ácido sulfúrico, etc.
La gran cantidad de agua que utiliza este proceso contamina, no solo el suelo donde es desechada, sino también las fuentes de agua, arroyos y ríos principalmente amazónicos. Otro tanto ocurre con la deforestación para la construcción de fábricas, caminos de penetración, aeropuertos clandestinos y cambio en el uso de la tierra.
Se observan, además, ingresos ilegales a esas áreas protegidas con fines de colonización y ampliación de las fronteras agrícolas y ganaderas y ciertamente la ampliación del narcotráfico. Ante esto, se suscitan movimientos ambientalistas que luchan para detener estos crímenes ambientales y se enfocan principalmente en la abrogación de las conocidas “leyes incendiarias” que legalizan las quemas y desbosques en beneficio de los colonos y, en última instancia, los potentados agroindustriales del oriente boliviano.
Publoes indígenas y la búsqueda de soluciones
En Bolivia, desde la aprobación de la Nueva Constitución Política del Estado (2009), los llamados pueblos indígenas se constituyen en Naciones dentro de un Estado Plurinacional, siendo estas 36.
Para el consumo cultural de la hoja de coca de estas naciones la ley permite, como vimos, el cultivo de 22.000 has, todo lo demás es excedentario y va al narcotráfico.
¿Qué solución proponen para minimizar el “mal uso” de la hoja sagrada?
En palabras de una estudiante boliviana en Francia:
“Cuando llegué a Europa en abril de 2007, vi que el aspecto cultural y medicinal de la hoja de coca era desconocido por la gran mayoría del público. Todo era asociado y sigue siendo asociado con la cocaína, y esto afecta negativamente la imagen de la hoja de coca.“
Y es este criterio mundial de estigmatización de la coca y su uso, lo que impide, dicen los productores y consumidores indígenas, su desarrollo como mercancía y su concurrencia en el mercado legal de productos naturales y orgánicos.
Un fabricante de té de coca asume ese mismo criterio:
“Si pudiéramos exportar de forma legal, los productores de coca aumentarían sus ingresos, eso no acabaría con el tráfico de drogas, pero sería más difícil y más costoso para los narcotraficantes conseguir la coca.“
Entonces, para las naciones indígenas de Bolivia, la “desnarcotización” de la sagrada hoja de coca a nivel global podría contrarrestar su uso delincuencial y – siendo consecuentes y acompañándolos en su lucha – podríamos también oponernos efectivamente a situaciones como la descrita en esta triste relación trinacional del crimen organizado.