Seca extrema ameaça produção de agricultoras na Amazônia
Na Resex Chico Mendes, produtoras rurais e extrativistas relatam como a estiagem severa de 2023 impacta o cultivo de seus roçados. Em muitas áreas, famílias perderam grande parte dos cultivos pelo atraso no início das chuvas. O calor extremo também compromete a rotina de vida e de trabalho no campo. Altas temperaturas reduzem a quantidade de horas nos roçados – e a qualidade do que vai ser plantado.
Fabio Pontes
dos varadouros de Brasileia
O ano de 2023 entra para a memória dos moradores da Amazônia como um dos mais críticos quando o assunto são as mudanças climáticas. Para a população da Bacia do Rio Acre, então, nem se fala. Após enfrentarem uma das maiores enchentes no fim do primeiro trimestre, as comunidades urbanas e rurais precisaram lidar com temperaturas extremas, falta de chuvas e escassez de água para as atividades mais básicas – desde um simples banho, o preparo da comida e indo até a manutenção dos roçados e as criações de animais.
Nem mesmo as comunidades localizadas em áreas de floresta mais bem conservadas escaparam dos efeitos da atual crise climática. Sejam nas aldeias ou comunidades ribeirinhas, ficou insuportável conviver com o calor. É o caso das famílias moradoras da Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes, localizada no sudeste acreano. E nos últimos anos, muitas destas famílias passaram a ser lideradas por mulheres. Seja trabalhando como agricultoras ou extrativistas, elas conhecem, na prática, o que muitos ficam a discutir apenas como teoria: as mudanças climáticas.
Varadouro esteve no fim de novembro na Resex Chico Mendes, nos limites do município de Brasileia, para ver de perto como as alterações dos ciclos das chuvas e da seca na Amazônia impactam as vidas das mulheres e suas famílias. Impactos que vão desde a busca por maneiras de como mitigar as altas temperaturas, a falta de água e a perda dos roçados de milho, café, arroz e outros por conta da demora no início das chuvas.
Moradora do Seringal Guanabara, colocação Palmeiras, Iranilce Silva, de 34 anos, é uma jovem liderança extrativista dentro da unidade de conservação federal. Além de viver do extrativismo tradicional – com a quebra da castanha e o corte da seringa – ela tem na agricultura uma importante fonte de renda e de segurança alimentar. Numa de suas áreas faz o cultivo de frutas e café por meio de um Sistema Agroflorestal, o SAF.
Com as elevadas temperaturas, os SAFs passaram a ser a melhor forma encontrada para trabalhar com a agricultura nos dias e horários mais quentes. A sombra das árvores ameniza o calor. Mas na hora do pico, não tem jeito. “Hoje a gente tem que começar o mais cedo possível na roça para ficar o menos possível exposta ao Sol. Quando dá umas nove horas já fica difícil de trabalhar. O calor é insuportável”, comenta Iranilce.
Uma das estratégias que ela adotou para amenizar os efeitos das temperaturas extremas na saúde dela e das filhas foi se molhar e ficar com as roupas encharcadas à sombra das árvores plantadas no quintal de casa. Mesmo com eletricidade, nem o ventilador ameniza. “Eu não sei aonde a gente vai parar, e nem o que fazer para não sentir tanto calor”, comenta.
Iranilce teve que atrasar o começo do plantio do milho, pois as chuvas chegaram com muito atraso. Somente a partir do fim de novembro elas passaram a cair com mais frequência. Outubro e novembro – tradicionalmente – eram os meses em que os agricultores da região já começavam a semear os roçados. Mas, em 2023, a situação foi bem diferente. Essa redução do volume pluviométrico na Amazônia é atribuída ao fenômeno climático El Niño, que é o aquecimento das águas do Pacífico Equatorial. O El Niño de 2023 é apontado como um dos mais intensos em décadas.
No calendário das populações amazônidas, os meses de outubro e novembro (noutros tempos passados) deveriam ser o de início do “inverno amazônico” – o período de chuvas da região. Todavia, em 2023 elas ficaram raras, e apenas ondas de calor marcaram o clima da região em boa parte do ano. Quem decidiu plantar no período, perdeu toda a produção.
“A gente parou de plantar o que estava plantando. A gente parou de plantar o arroz, o milho. O milho que a gente plantou está enrolando a palha. Começamos a plantar o café, e paramos também. Plantamos só duas, três carreiras e paramos. A gente está vendo que está tudo descontrolado. Tipo assim: o futuro está incerto”, diz a extrativista. “O futuro pertence a Deus, e aí a gente não sabe o que pode acontecer, como a gente vai se alimentar se o desequilíbrio da natureza está nessa situação.”
Iranilce está entre as quatro mulheres do Seringal Guanabara de um projeto da Secretaria de Agricultura (Seagri) do Acre para o cultivo de café na Resex Chico Mendes. O café passou a ser um dos principais ativos na economia rural da Amazônia. Além de uma fonte extra de renda para as famílias – por já ter mercado garantido – ele tem a contribuição ambiental, ao ser cultivado apenas na recuperação de áreas degradadas pelo desmatamento.
Na colocação Palmeiras, Iranilce Silva possui mais de nove mil pés plantados. Ela está entusiasmada com o projeto. Com o apoio da família, iniciou o projeto Raízes da Floresta para comercializar o café plantado em sua área. A proposta é assegurar valor ao produto, apresentando como oriundo de uma unidade de conservação da Amazônia, e que contribui para recuperar áreas degradadas, reduzindo o impacto do desmatamento.
O preço mínimo da saca de 50 quilos está hoje em R$ 650. Caso o mercado pague ainda mais, o café estará em pé de igualdade para concorrer com a pecuária – hoje o principal vetor do avanço da degradação da Resex Chico Mendes.
Resistência e resiliência
Fabíola Lopes Santos tem 28 anos e é moradora da colocação Cutubina, no Seringal São Cristóvão. De Brasileia até a comunidade são 88 quilômetros de distância, percorrendo a BR-317 e o Ramal do 52. Ela é outra das jovens lideranças femininas dentro da Resex Chico Mendes. Sua história de vida está toda escrita dentro da unidade de conservação.
Casou-se cedo, ainda aos 13 anos de idade. Hoje é mãe de quatro filhos. Superou muitos obstáculos em sua trajetória. Para garantir a reconstrução da casa junto com o esposo – pois a primeira pegou fogo – aprendeu a cortar seringa. Foi da venda da borracha que tirou dinheiro para comprar as telhas da nova moradia.
Por ter sido mãe cedo, precisou abandonar os estudos. Mas com muito esforço e perseverança conseguiu concluir o ensino médio ano passado. A determinação não acaba por aí: ainda quer se formar em agronomia. O trabalho e o conhecimento prático de lidar com a terra já a gabarita hoje a ser uma agrônoma sem a necessidade de um diploma universitário. Para poder fazer a faculdade teria que morar na cidade. Na Cutubina não há eletricidade – o que dirá acesso à internet.
O problema é que essa experiência da relação com a natureza para definir os ciclos de plantio e colheita vem mudando na Amazônia. O calendário entre o inverno e o verão amazônicos mudou. O modo de vida tradicional das populações da floresta está modificado – colocando em risco suas seguranças hídrica e alimentar. As mudanças impactam não só as comunidades extrativistas à margem de um ramal, como também as ribeirinhas e as aldeias.
“Hoje se eu não pegar o meu bebê de quatro anos e não der três a quatro banhos no dia, ele sofre. A gente vê que ele está sentindo na pele os efeitos do calor. Isso vem mexendo muito com a vida da pessoa do campo. Quem mora na floresta está sentindo, quem mora na cidade está sentindo mais ainda”, diz Fabíola.
Para ela, o aumento do desmatamento e das queimadas dentro da Resex Chico Mendes é algo que contribui para potencializar os efeitos das mudanças climáticas. Ela defende uma ação urgente de reflorestamento das áreas degradadas. Para que isso ocorra, completa ela, é preciso uma ação conjunta do governo federal, por meio do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), do governo estadual e das prefeituras para que assegurem assistência técnica rural nas comunidades.
Segundo Fabíola, ela perdeu mais da metade dos pés de milho plantados em outubro. Eles acreditavam que poderiam contar com as chuvas para irrigar o roçado – mas elas não vieram. “O meu pai plantou arroz em setembro, ele teve que replantar agora com as primeiras chuvinhas. Mesmo que a chuva tenha chegado vai ter impactos. O milho não será um milho de qualidade, vai ser com falhas. As espigas não vão ser como antes”, avalia a agricultora.
Fabíola diz acreditar que os impactos para a agricultura vão se estender por 2024. O principal efeito será sobre a produção de leguminosas – que servem tanto para a dieta da família como para alimentar as criações de galinhas e porcos. “Nós nos envolvemos muito na criação de porco, porque, querendo ou não, é um ganho, é uma alternativa de renda. Das 100 cabeças de porco eu vou vender uma parte porque eu já estou pedindo ajuda a Deus para ter legume pelo menos pras galinhas.”
A extrativista avalia que os impactos da estiagem de 2023 sejam mais severos que o da grande seca de 2005. Naquele ano, mais de 300 mil hectares de incêndios florestais foram registrados na região leste do Acre – parte deles no interior da Resex Chico Mendes. Fabíola diz que neste ano muitas comunidades ficaram sem acesso à água por as fontes terem secado. Ela que uma vizinha, ainda no final de julho, viu sua vertente secar por completo. Diariamente, a colega precisava percorrer dois quilômetros, até a casa da mãe, para buscar água.
Atenção às agricultoras
Presidenta do Sindicato dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais (STTR) de Brasileia, Francisca Bezerra afirma que passou a ser comum o relato das agricultoras e agricultores afetados pelos efeitos das mudanças climáticas. Isso tanto pela perda da produção por causa da falta de chuvas ou das queimadas. Para ela, as mulheres são as que mais sentem as consequências pois além da necessidade de cuidar da terra, precisam lidar com as tarefas do dia a dia em casa e dos filhos. E de tudo o que é cultivado ou extraído dos seringais que elas obtêm a renda familiar – além dos roçados serem a fonte de alimento para a própria casa.
Para amenizar os impactos das mudanças climáticas sobre a vida das agricultoras, o STR Brasileia desenvolveu, em 2023, o projeto Juntas na Terra, com as ações financiadas pelo Fundo Casa e a Aceleradora Iara e Purpose.
“Empoderar as mulheres agricultoras para que elas possam enfrentar as mudanças climáticas em nossa região, tanto com as secas quanto as cheias, é um grande desafio pela frente. Também precisamos cobrar ações mais práticas dos governos para amenizar estes eventos”, diz Francisca.
No começo de novembro, o STTR realizou uma oficina para as agricultoras de Brasiléia com o tema mudanças climáticas e justiça de gênero. Para a presidenta. parcerias como estas são essenciais para assegurar uma melhor qualidade de vida às agricultoras e extrativistas num momento de alterações tão intensas nos ciclos de chuvas e estiagem na Amazônia – o que coloca em risco a sobrevivência destas para as populações.
Para mulheres como Iranilce Silva e Fabíola Lopes – e tantas outras centenas de agricultoras – as mudanças climáticas não são algo para acontecer daqui três ou cinco décadas. Já vivemos uma crise climática; as respostas, para todas as crises, precisam ser urgentes, para agora.
Esta é uma reportagem produzida pelo Varadouro em parceria com o STTR Brasileia, a partir de projetos financiados pelo Fundo Casa, a Aceleradora Iara e Purpose, além de apoio do ICMBio.