Sobre a louca expressão em Cruzeiro do Sul: arte, saúde mental e direitos

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Demorei para começar a escrever este texto. E mesmo agora, que convenci a mim mesma que deveria começá-lo, não sei muito bem que rumo ele tomará, mas sigo e espero que encontre companhia por essas letras. Ao menos a de minha mãe sei que terei, pois ela já me mandou mensagem perguntando pelo texto da semana. Minha mãe é uma mulher e – como a maioria de nós – está sempre muito preocupada com o bem-estar das pessoas ao seu redor, como se isso fosse (mais) uma responsabilidade sua.

“Um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades” é como a Organização Mundial de Saúde (OMS) define saúde. Em toda primeira aula da disciplina de Psicologia Jurídica questiono à estudantada se eles se encontram nessa definição, a gargalhada geral e lamúrias é sempre a resposta desde 2019, ano em que assumi a disciplina e iniciei o desafio de refletir profundamente sobre a mente e seus mistérios – enquanto lido com minha própria corda bamba de bem-estar mental.

Este ano, fizemos (eu e parte das estudantes da disciplina) uma intervenção no CAPS Náuas, serviço de atenção psicossocial que funciona em Cruzeiro do Sul desde 2005 e que atende pessoas do Vale do Juruá que convivem com transtornos mentais graves ou estão em uso abusivo de álcool e outras drogas. Como uma proposta que começa a se desenhar no período de redemocratização do Brasil, no final da década de 1980, os CAPS consistem em um serviço de saúde que objetiva o cuidado da saúde mental em liberdade.

Um dever de memória e justiça a um passado que sistematicamente criou campos de concentração Brasil afora sob a alcunha de “hospitais psiquiátricos” – manicômios que produziram milhares de violências e mortes, mortes morridas e mortes matadas. E também morte em vida, esse tipo de morte que corrói, dia após dia, o que torna cada uma de nós uma pessoa: nossa individualidade.

Ao negar nome, voz, convivência, cidadania, lazer, cultura e expressão, os manicômios, com o aval do Estado, forjaram não apenas espaços asilares violadores de direitos, mas toda uma sociedade manicomial que vê a “loucura” como uma febre que danifica o espírito e é passível de contágio.

Aliás, foi o que mais ouvi quando falei da minha ideia de intervenção no CAPS pela disciplina: – “Cuidado! Eles são perigosos”. Não basta derrubar os muros dos manicômios como simbolicamente fizeram os Basaglia na Itália do século XX, é preciso derrubar as estruturas de pensamento que enclausuram o sofrimento mental numa condição que excede o ser humano e toda a sua potência criativa e expressiva.

E por falar em expressão, há 5 anos o CAPS Náuas realiza o “Sarau Louca Expressão”, um evento aberto ao público em alusão ao Dia Mundial da Saúde Mental que reúne lazer e cultura a fim de derrubar, tijolinho por tijolinho, o estigma da “loucura” aproximando a sociedade aos usuários e usuárias do serviço. Afinal, quem passa imune à magia da explosão de cores e formas das pinturas de Chico? Ou do bom humor, carinho e amor pela música que Andressa manifesta? Ou a poesia que Iara traz nas palavras e no seu olhar? Estou falando de pacientes que, ao lado de grandes artistas cruzeirenses consagrados na cena local, compartilharam um pouco de sua arte na V edição do Sarau, que ocorreu no complexo Esportivo do Aeroporto Velho no último dia 20 de outubro.

Talvez eu tenha demorado tanto para começar a escrever esse texto porque acho que não tenho as palavras certas para expressar o que senti ao assistir a um show de forró pé de serra acompanhado pelos atabaques falantes nas mãos dos parentes indígenas enquanto o malabarista se equilibrava sobre uma roda fazendo girar tochas acesas diante de nossos olhos boquiabertos.

Como narrar isso? Como nomear o deslumbre provocado pelo encontro entre diversidades que apenas buscam estar juntas? Naquele momento, talvez tenhamos “empurrado o céu” de Cruzeiro do Sul mais um pouquinho e nos dado uma dose de bem-estar – ou bem viver? – para seguir tocando nossas lutas diárias.

A equipe do CAPS Náuas, com cerca de 12.000 usuários cadastrados, faz um trabalho fantástico, muito além do que suas profissões exigem. Mas ela não pode fazer tudo sozinha. É preciso que todos os órgãos e instituições atuem em conjunto a fim de promover justiça e garantir cidadania a essas pessoas. Em nossa intervenção, o que mais vimos como desafiador não foram os diagnósticos – já que a equipe sabe cuidar com maestria – mas a sistemática violação de direitos decorrentes da negligência dos poderes públicos locais em garantir dignidade à população em geral.

Apenas para ficar em um exemplo, como é possível manter um “completo bem-estar” em uma cidade que, além de pouco arborizada e repleta de ladeiras, não possui uma de rede transporte público que funcione de noite e adentre nos bairros, onde as pessoas moram e tecem suas histórias? Como é possível viver o lazer, o esporte, a cultura, a política e a luta por direitos sem poder transitar pela cidade sem o mínimo de condições dignas? Mas se diz normal a sociedade que aceita viver sob essas circunstâncias.

Bem, se você chegou até aqui, talvez tenha lembrado da saudosa voz de Gal Costa nos alertando que “de perto, ninguém é normal”. Entre notícias de genocídio do povo palestino e sintomas de aquecimento global machucando a floresta e seus protetores e protetoras, te desejo boa sorte na corda bamba que é equilibrar a saúde mental. Lembra de respirar e segura firme!



Leonísia Moura
Professora do Campus Floresta, em Cruzeiro do Sul,, pesquisadora feminista e militante de direitos humanos.
Um corpo cearense criando raízes na Amazônia acreana.

leonisia.mouraf@gmail.com





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