Educação popular e território em Rio Branco – ontem e hoje

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O Acre foi praticamente uma escola de educação popular a céu aberto, durante os anos 1970-80. Nessas décadas, algumas organizações desempenharam a função de formar e fermentar a atuação político-cidadã dos estratos subalternos da sociedade, orientando-os acerca dos conflitos territoriais que então se davam nos mais diversos quadrantes do estado.

Na área urbana de Rio Branco, entre outras, foi particularmente decisiva a atuação das Comunidades Eclesiais de Base (Cebs) e das associações de moradores de bairro. Comumente, essas organizações atuavam em conjunto, organicamente vinculadas. Daí a razão de muitos dos encontros – em que se discutiam e decidiam coisas sobre o bairro – se darem nos centros comunitários, espaços da Igreja Católica em que a comunidade realiza seus cultos e demais encontros.

Ainda sob a ditadura que se instalou entre nós desde o golpe civil-militar de 1964, os partidos políticos ou estavam proscritos ou ainda não estavam suficientemente fortes, como ficaram depois da “abertura democrática”. Por essa razão, a atuação – para usar uma feliz expressão de Gramsci – daqueles aparelhos privados de (contra)hegemonia foi ainda mais fundamental.

Por um lado, ajudaram a preparar a resistência, a conter o autoritarismo e, por outro, a assegurar a efetivação de direitos basilares, como o direito à vida, à terra e à moradia. No interior, deve-se acrescentar, sua atuação contribuiu substancialmente para a formação dos sindicatos dos trabalhadores rurais (donde saíram figuras como Wilson Pinheiro e Chico Mendes, para citar apenas dois exemplos) e, através deles e com eles, “empatarem” a destruição da floresta pretendida pelo grosso do “sulistas” que para cá acorriam naqueles anos.

Depois de décadas atuando em favor dos de cima, na atuação das Cebs, a Igreja Católica emprestou sua autoridade e capilaridade à luta dos de baixo. Nas celebrações que estas faziam, discutiam-se, sempre, as coisas do espírito e as coisas do corpo, as do céu e as da terra, as do evangelho e as da vida. A linguagem que aí se usava era a do povo simples. Independentemente do grau de instrução formal – se muito, se pouco ou mesmo nenhum -, todos entendiam.

Além da fé e do espírito de comunidade que então reinava, os participantes também eram movidos pelo que ali se discutia a respeito de sua rua, sua quadra, seu bairro. Colocava-se em questão, como exigência de uma ação prática, coisas como iluminação pública, asfaltamento, escola, posto de saúde etc. Todo encontro era assim. Caso o representante da associação de moradores já não estivesse presente no encontro, pois era comum que ele fosse também partícipe das Cebs, as demandas eram levadas até ele a posteriori.

Neste sentido, ao mesmo tempo em que eram inegáveis escolas de fé, por força da educação popular que protagonizavam, as Cebs – em colaboração com as associações de moradores – eram também escolas de cidadania. Em sentido altamente positivo, do ponto de vista da política e da cidadania, as preocupações da esfera pública eram acolhidas na esfera privada.

E que ninguém, desavisado, tome o passado pelo presente. Em que pese a proeminência de que gozavam, sem par naqueles decênios, as Cebs não faziam proselitismo. Seu objetivo primeiro nunca foi conquistar fiéis e, assim, aumentar seu rebanho. Longe disso. Comungavam-se ali muito mais a preocupação e a luta pelo bem comum, o que unia a todos, do que um credo específico que os pudesse dividir e enfraquecer. Os interesses coletivos se impunham.

Ademais, pouco importava se os participantes tinham este ou aquele credo. Tampouco importava se não tinham credo nenhum. A fé não era mesquinha nem sectária. Por importante que esta fosse – e ela o era -, esta não era absolutizada. A crença na força da união e na necessidade de ajudar quem mais precisa era maior. E tanto bastava.

Pregação “comunista”? Óbvio que não. O que havia de fato era apenas a luta por uma democracia política (“abertura democrática” e direito ao voto), popular (a participação do povo nos processos de tomada de decisão do que lhes interessa) e social (direitos sociais, como moradia, reforma agrária, saneamento, saúde etc.), coisas que, posteriormente, encarnaram-se na Constituição cidadã.

As Cebs e as associações de moradores foram exitosas em muito do que se propuseram. Sem sua atuação, corajosa, esclarecida e esclarecedora, a questão agrária seria muito mais dramática entre nós, assim como o desmatamento, a falta de moradia, de saneamento, de escolas, de iluminação pública, de consciência cidadã e por aí vai. Considerando o contexto em que atuaram, é forçoso reconhecer seus êxitos, apesar dos pesares.

Coisa digna de atenção: o fato de terem feito avanços significativos durante o período ditatorial e de terem perdido quase tudo durante o período democrático que se abriu a partir de 1985. São muitas as explicações possíveis para o fenômeno. A nosso ver, a relação orgânica que mantinham com o PT (Partido dos Trabalhadores) é uma das mais razoáveis e significativas.

Não tendo partido político que expressasse de fato os interesses populares durante a ditadura, aquelas organizações agiam com bastante autonomia frente às estruturas partidárias, algo muito significativo. Sem intermediários, atuavam na base, no meio do povo, com o povo. Era fácil promover encontros entre os participantes. Todos se conheciam, conheciam os problemas a serem enfrentados. Nada havia de complicado ou abstrato nisso.

Era uma atuação cotidiana, que, sem se prender a calendários eleitorais, dedicava-se inteiramente à educ-ação popular. Portanto, o centro de tudo era o protagonismo popular: o que o povo poderia fazer por si mesmo, numa articulação com outras organizações e poderes. Disso decorre suas lutas para trazer a prefeitura (e as demais estruturas do Estado) para dentro do bairro, de modo a fazê-los ali presentes, tanto na forma de estrutura quanto na de serviços.

A importância disso para a configuração territorial de Rio Branco foi enorme. Isto porque muitos foram os que chegaram às periferias desta cidade expulsos pelos conflitos territoriais que explodiam nos seringais durante aqueles anos. E chegando aí enfrentavam mais conflitos territoriais, pois a capital do estado também havia sido um seringal. Muitas terras; poucos donos. Estes não abririam mão de suas terras sem oferecer resistência e distribuir violência a torto e a direito.

Sem a atuação das Cebs e das associações de moradores, a violência urbana teria atingido os níveis que atingiu nos seringais. Elas foram responsáveis por desenvolver a consciência cidadã e o sentimento de responsabilidade e pertencimento a um território. Na linguagem dos geógrafos, dizemos que se desenvolviam assim, num mesmo movimento, os processos de territorialidade e territorialização.

Assim era no período ditatorial. Por ser um partido de bases sociais e diverso, quando veio a abertura democrática, o PT herdou quase todo capital político acumulado por aquelas organizações. Estas diminuíram para que aquele crescesse. Inclusive, muitas das lideranças do PT local saíram delas.

Quando o partido chegou ao comando da prefeitura da capital e, depois, ao comando do estado, e aí se valeu de métodos da direita para governar, estabeleceu-se um dilema paralisante nos meios sociais. Líderes e organizações – os que não foram cooptados -, percebendo os erros hesitaram em criticar e denunciar seus “companheiros”, com medo de fortalecer, involuntariamente, seus adversários históricos.

A educação popular, que ensinava e encorajava a falar, silenciou. Destarte, a governabilidade petista significou a ingovernabilidade de suas bases históricas. Por fim, como sabemos, o partido colapsou – pelos menos, momentaneamente -, mas não antes de prejudicar suas próprias bases, deixando-as enfraquecidas e desacreditadas.

No âmbito específico da Igreja Católica, nos embates que se desenrolavam em seus interstícios, os grupos conservadores saíram vitoriosos e, paulatinamente, substituíram a teologia da libertação por uma teologia de cariz entre conservador e reacionário. Os papados de João Paulo II e Bento XVI bem expressam esse novo momento.

Entre padres e bispos, os sacerdotes progressistas foram perseguidos e/ou substituídos por outros, mais conformes o entendimento teológico-pastoral da nova cúpula da Igreja. Na Diocese de Rio Branco, Dom Moacyr – bispo de perfil progressista, que foi um dos grandes responsáveis pelo fim do esquadrão da morte muito atuante naquele período – fora substituído por Dom Joaquin, bispo mais conservador.

Em termos gerais, a Igreja se enclausurou em si mesma, numa atitude clericalista. A questão social voltou a ser tratada em termos caritativos, quando muito. Por outro lado, os católicos carismáticos foram crescendo em tamanho e influência. Contando com apoio e bênção dos referidos papas, professam um catolicismo de traço espiritualista. Avessos a qualquer preocupação social com a sorte dos que sofrem, assumem, no máximo, uma postura caritativa, isto é, sem se preocupar com questões estruturais e sistêmicas que produzem e reproduzem misérias.

Expressão inegável de seu conservadorismo é a oposição aberta que movem contra o Papa Francisco. Alguns chegam ao ponto de chamá-lo “comunista” e exigem seu impeachment (impedimento). Dessa maneira, negando o que, por ignorância ou maldade, chamam “comunismo”, vão-se perfilando perigosamente aos extremistas de hoje.

“Entre ameaças e assédios, a vida vai ficando “insuportável” nesses bairros em que, já agora, o Estado democrático de direito virou mera ficção. Enquanto as associações de moradores e as Cebs procuravam trazer o Estado para dentro do bairro, as organizações criminosas o expulsam do bairro, consolidando assim seu domínio.


O vácuo deixado pela Igreja Católica (com suas Cebs) foi ocupado pelas igrejas evangélicas e suas células, de corte neopentecostal. Embora diversas, se tomadas em seu conjunto, é possível constatar que formam uma complexa rede, com enorme alcance e capilaridade. Com efeito, em alguns bairros e regiões, são muito mais numerosas que botecos, bares, restaurantes e escolas.

Como demonstrado pelas mais variadas pesquisas, entre essas igrejas, as que mais crescem são as adeptas da teologia da prosperidade. Funcional ao sistema capitalista, trata-se de uma teologia que ensina que os problemas sociais – máxime a pobreza – são fruto da falta de fé e, como tais, podem ser resolvidos com mais fé e o estabelecimento de alguns “propósitos” para com Deus, como a entrega de ofertas graúdas, o pagamento do dízimo, a compra de objetos consagrados etc. Caberia ao fiel subornar e assediar a Deus por suas bênçãos.

É assaz conhecida sua orientação proselitista e sectária. Buscam ampliar o número de seus fiéis e, por conseguinte, sua influência social e política. Para tanto, suas células são organismos muito eficazes. Através delas, que se multiplicam com assustadora velocidade, cobrem vastas regiões. Além disso, servem para controlar toda a vida de seus fiéis, nas mais variadas esferas, como a sexual e a política. Seus líderes têm muitos olhos e ouvidos. Tudo ouvem, tudo veem, tudo sabem.

Através de suas células, tais igrejas propagam uma teologia/ideologia que transfigura questões sociais em questões espirituais, empurrando para a esfera transcendente o que é da esfera imanente. Mistificando as relações entre os homens, elas educam politicamente deseducando politicamente. Não há luta. Há burla.

Nesse ambiente, a cidadania ou é anulada ou é enfraquecida. Como tudo é passível de ser resolvido numa relação do indivíduo consigo mesmo ou com Deus, a noção de coletividade é suplantada pela de individualismo. Eis a escola da indiferença.

Sob a influência destas relações alienadas e alienantes, os interesses coletivos desvanecem, bem como a esfera pública e o interesse pelo território/bairro, bem comum. Mais que os serviços que os representantes do poder público podem fazer por todo o bairro, importa a fé que professam e os valores por eles defendidos. Estamos em face, portanto, de valores e práticas clericais-corporativistas. O mundo deles começa e termina na comunidade religiosa.

Nesta parte última do texto, gostaria de tratar de um assunto a que ainda não se deu atenção até agora: o controle das organizações criminosas sobre os bairros e as implicações políticas disso. Acreditamos que, para tanto, será salutar contrastá-la com a atuação e os objetivos das associações de moradores em anos pretéritos.

Fato notório é que estas organizações redesenham o território, forjando novas territorialidades e territorializações. Os bairros já não são definidos por suas fronteiras em si, mas pelo raio de influência da organização criminosa nele dominante. É certo que tais fronteiras sempre foram um tanto fluídas – o que explica o surgimento de um bairro a partir de outro, além da falta de planejamento urbano por parte dos poderes públicos -, mas agora estão muito mais, modificando-se ao sabor das disputas entre os grupos criminosos.

Como sabemos, tais grupos têm nos bairros o fundamento territorial de seus domínios, exercendo neles poder de vida e de morte sobre seus moradores. Dado que se trata de um poder exercido in loco e em tempo integral, os indivíduos estão muito mais submetidos a este poder do que aos poderes oficiais (como o da política, da justiça e mesmo da polícia). Habitualmente, tal poder se vale das ameaças, do medo, da violência física e de execuções sumárias etc. Prendem, julgam, condenam, executam.

Weber (2016, p. 316) era da opinião de que “o Estado é aquela comunidade humana que, dentro de determinado território – o ‘território’ faz parte da definição de Estado – reivindica para si (com êxito) o monopólio da violência física legítima. Tal assertiva não vale para esses espaços de que tratamos. Em verdade, aí o Estado foi despojado de seu território e do “monopólio da violência legítima”. Desalojado, despedido de mãos vazias, no momento, o Estado assiste, entre atrapalhado e inerte, às facções atuarem como verdadeiros Leviatãs do crime, para recorrer à célebre expressão de Hobbes.

Desamparados pelo Estado (ante a sua falência), jovens na periferia viram presas fáceis das facções criminosas, formando um “exército” imbatível; quando não são “soldados”, jovens são obrigados a “virar crente” para não morrer (Foto: Secom/Acre)



Claro fica que se trata de poder absoluto e ele se faz sentir nas mais variadas esferas. Cada um desses grupos criminosos estabelece regras a partir das quais controlam, além do território em geral, os corpos dos moradores. Controlam o tipo de roupa que podem vestir, o corte ou a pintura do cabelo, a música que ouvem… Nada do que usam, falam ou fazem pode lembrar os grupos rivais, podendo ser considerado “traição” digna de pena capital.

Nesses dias, o controle passou a incorporar mais um elemento: o celular e o que nele se faz. Membros ou “aliados” desses grupos passaram a pegar/tomar o celular de alguns indivíduos e a bisbilhotá-lo. Caso o dono do celular tenha feito alguma postagem que os desagrade ou tenha mantido contato com um conhecido que mora em outro bairro, que porventura seja controlado por grupo rival, é possível que apanhe, seja ameaçado, expulso do bairro ou mesmo executado. Agora, uma simples conversa (ou um simples número guardado na agenda) pode acarretar a morte.

Em dias recentes, um jovem já foi torturado e morto por causa disso – no município de Rodrigues Alves (localizado no Vale do Juruá) ocorreu caso semelhante. Outros estão sendo expulsos de suas residências, sendo obrigados a deixar o bairro às pressas para não morrerem.

Observe-se que aqui se somam duas formas de desterritorialização, desenraizamento. A primeira: os indivíduos podem até ficar no bairro, mas este não pertence mais a eles. O bairro pertence ao grupo criminoso. A segunda: o indivíduo é expulso de sua casa, obrigado a buscar abrigo em outros bairros.

O problema é que, todos sabem, a cidade de Rio Branco – na verdade, o Acre de uma maneira geral – já está completamente loteada e dividida entre as organizações criminosas. Não há lugar seguro, fora de suas influências e poderes. Não obstante, assim como as igrejas evangélicas citadas há pouco, esses grupos são altamente proselitistas. Buscam aliciar jovens e adolescentes a todo custo, a fim de suplantar seus adversários pelo tamanho de seu “exército”. Eis a escola do crime.

Entre ameaças e assédios, a vida vai ficando “insuportável” nesses bairros em que, já agora, o Estado democrático de direito virou mera ficção. Enquanto as associações de moradores e as Cebs procuravam trazer o Estado para dentro do bairro, as organizações criminosas o expulsam do bairro, consolidando assim seu domínio.

Por isso, é possível dizer que a cidadania foi cassada e a democracia está morta nesses espaços. Que concepção de coletividade pode florescer nesse terreno? Que sentimento de pertencimento pode aí ter lugar, se tudo parece incerto e hostil? A quem recorrer?

Quem manda de fato nessas localidades não é o Estado nem o cidadão, e sim os grupos criminosos. Numa clara expressão da privatização dos espaços públicos, a política recua e se acomoda à territorialidade do crime. Para sobreviver nesses espaços, parece que toda educação requerida, hoje, resume-se a obedecer. E o que antes parecia uma escola de educação popular a céu aberto, hoje, parece mais uma prisão a céu aberto, perigo por todos os lados.

De ponta a ponta, o estado parece um campo de batalha em que os Leviatãs do crime protagonizam bellum omnium contra omnes (“guerra de todos contra todos”), para outra vez recorrer a Hobbes. Por fim, deixamos o registro de uma espécie de concertação que há entre essas igrejas e as organizações criminosas.

Como dissemos há pouco, ambas são fortemente proselitistas. É em meio ao assédio de ambas que nossos jovens estão crescendo e se formando. Outrossim, ambas são sectárias e movem guerra – cada uma a seu modo – a seus adversários. Coisa muito curiosa e muito danosa para a formação de uma consciência cidadã é que, para sair de um grupo criminoso, o indivíduo tenha que necessariamente entrar numa dessas igrejas.

Longe de nós recriminar quem procura mudar e salvar a própria vida. É de lamentar, porém, que o tenha que fazer escolhendo entre uma e outra alienação.


Israel Souza é Professor e pesquisador de Instituto Federal do Acre/Campus Cruzeiro do Sul. Autor dos livros Democracia no Acre: notícias de uma ausência (PUBLIT, 2014), Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa fascinante, a tragédias facínora (EDIFAC, 2018) e A política da antipolítica no Brasil, Vol. I e II (EaC Editor, 2021).
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