35 ANOS SEM ELE

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Mesmo sofrendo as suas, Chico Mendes mostrou agruras amazônicas ao mundo

Chico Mendes observa área desmatada em Xapuri (Foto Carlos Ruggi, Acervo O Estado de S. Paulo)



Neste 22 de dezembro de 2023 são lembrados os 35 anos do assassinato de uma das mais importantes vozes de defesa da floresta em pé na Amazônia Brasileira: Francisco Alves Mendes Filho, o Chico Mendes. O seringueiro de Xapuri lutou e denunciou ao mundo as consequências da desastrosa política da ditadura militar para a Amazônia. Ao se opor aos interesses dos latifundiários que chegavam ao Acre, ele passou a ser ameaçado de morte – ameaças concretizadas em 22 de dezembro de 1988. Chico foi morto, mas seu legado está mais vivo do que nunca.



Montezuma Cruz
Dos varadouros de Rio Branco


A vida do líder seringueiro mistura-se com a vida do Acre e da Amazônia. “Foi muito comum a presença de Chico na redação do Varadouro, em Rio Branco”, conta o jornalista Elson Martins da Silveira em recente texto para a revista Xapuri. “Ele era um sábio. O que acontecia no Acre tinha algo de incomparável com o conhecido em outras regiões. A insatisfação com a ditadura era comum, mas se distinguia no discurso e nas formas de resistência.

O que Chico trazia da floresta era mais simples e novo para os que lutavam na cidade. Tinha menos código, mais transparência, a certeza de um mundo diferenciado e possível, lembra o jornalista. Publicamos ainda relatos de dois jornalistas que não chegaram a conversar com Chico.

Ele contemplava as alianças consideradas impossíveis. Antes da criação do PT tinha sido eleito vereador pelo MDB em Xapuri com apoio declarado de seu patrão, um seringalista.

A luta dos seringueiros em defesa da floresta e de todo o ambiente acreano ganhava aos poucos a simpatia dos seringalistas que não queriam ver a mata no chão. O líder soube cercar-se e aprender lições de pesquisadores, ambientalistas, cientistas políticos, lideranças dos sindicatos, partidos de esquerda etc. – mas, sobretudo, utilizar a imprensa. Com genialidade e candura ele queria tornar a luta dos seringueiros e índios do Acre planetária. Ele chamou a atenção para o valor da floresta e das populações tradicionais, para sua cultura, seus sentimentos e crenças”, escreve Elson Martins.

“Francisco Alves Mendes Filho, o Chico Mendes, foi um homem da floresta por excelência. Simples, pobre, cheio de ternura e de alma limpa. Aos cinco anos de idade acompanhava o pai, também Francisco, em longas caminhadas pela mata densa.”

Em 1988 ele foi premiado com a Medalha de Meio Ambiente da Better World Society e com o Global 500 da Organização das Nações Unidas (ONU) – único brasileiro a receber a honraria que homenageia personalidades que tiveram grandes contribuições para a preservação ambiental em seus países de origem.

Outros profissionais lamentam que só o conheceram a distância, quando milhões de hectares do Acre já estavam em mãos dos “paulistas” – como ficaram conhecidos por aqui os latifundiários vindos do centro-sul do país para “ocupar” a Amazônia, na política fomentada pela ditadura civil-militar (1964-1985).

O jornalista Luciano Martins Costa trabalhava na Folha de S. Paulo em 1988, e havia procurado Chico dois meses antes do fatídico 22 de dezembro de 1988; encontrou-se com Marina Silva, que naquela ocasião tinha 26 anos de idade e estava em campanha para seu primeiro cargo eleitoral, o de vereadora em Rio Branco. “Foi o primeiro contato direto com a luta dos seringueiros e que custou a vida de Chico e tantos outros defensores da floresta”, conta Luciano.

Luciano Martins Costa: “Chico enxergava o futuro e se sacrificou por ele” (Foto Jornalistas & Cia)

“Chico enxergava o futuro e se sacrificou por ele. Depois da minha visita sem vê-lo voltei algumas vezes ao Acre e testemunhei a transformação de Rio Branco em uma Capital mais vibrante, visitei algumas bibliotecas comunitárias, vi crescer e se organizar o movimento que ele iniciou e que depois ganhou um protagonismo global”, assinala Luciano.

“Ainda há muito o que fazer e temos enfrentado muitos retrocessos, mesmo assim esses revezes são parte da luta dele”, acrescenta o jornalista. Mais tarde, Luciano assumia a editoria executiva de O Estado de S. Paulo, Estadão, em cujas páginas os jornalistas Elson Martins da Silveira e Altino Machado relataram a luta de Chico. Outro jornalista acreano, Edilson Martins, escreveu entre outras, no extinto Jornal do Brasil, a última entrevista com Chico Mendes – uma história que ele conta muito bem, e emocionado, pois só veio ser publicada após o assassinato do líder.

Entre as décadas de 1970 e 1980, junto com Lúcio Flávio Pinto – que instalava a sucursal do Estadão em Belém (PA) , Elson trabalhava como correspondente de O Estado de S. Paulo na Amazônia Ocidental Brasileira – e ao mesmo tempo tocava o Varadouro em companhia do jornalista Sílvio Martinello.

“Por que não fui ao Acre conhecê-lo?”

A notícia do assassinato de Chico impactou de diferentes modos o povo brasileiro, notadamente pessoas que tinham noção sobre o que acontecia nas florestas amazônicas em um momento em que a sociedade e os movimentos sociais saíam de um dos períodos mais cruéis da história nacional.

As impressões da jornalista Cristina Ávila revelam o seu sentimento, quando recebeu a notícia de Xapuri no Natal de 1988. Ela era redatora do jornal Porantim, do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) em Brasília.

Cristina Ávila: ex- redatora do Porantim (Foto Amazônia Real)

Seu relato:

“A ditadura não apenas empurrou jovens de helicópteros para a morte no mar, ao vê-los revoltados com a repressão, a fome e a miséria que assolavam o país, mas criou projetos de desenvolvimento que excluíam o povo e beneficiavam os aliados do poder.”

“Fui morar em Porto Velho em fevereiro de 1982, um mês depois de Rondônia deixar de ser território federal para chegar à condição de estado. Eu havia me formado em jornalismo havia pouco mais de um ano e queria aprender o ofício. Permaneci seis anos na cidade e esse curto período marcou minha vida e está presente todos os dias da minha rotina até hoje. Isso não é exagero. Muitos amigos daquela época estão constantemente no meu Waths App; incrível, são mais de 40 anos.”

“Em minha militância partidária tive orientação de padres da Teologia da Libertação, e com eles aprendi a olhar criticamente para as imensas quantidades de dinheiro que eram derramadas pelo Banco Mundial em projetos sem sustentabilidade e que arrasaram a floresta em Rondônia, prejudicando principalmente seus moradores. Seis anos de debate com os amigos de partido, com os colegas jornalistas nas redações e sob o teto das igrejas me forjaram um traço profundo e definitivo em minha carreira.”

“Entrei no Correio Braziliense e depois entrei no escritório da secretaria-executiva do Cimi, órgão que conheci em Porto Velho, onde fui indicada repórter do Porantim, invicto sobre a causa indígena desde os anos 1970, impresso até em mimeógrafo e hoje maravilhosamente editado no modo digital.”


“O impacto do assassinato [de Chico] não teve apenas modos diferentes de atingir grande parte dos brasileiros e brasileiras, mas me fez sentir, dentro de mim, a dor da perda de mais um companheiro de luta contra as injustiças.”



A Constituição de 1988 fora concluída e promulgada dois meses antes da morte de Chico Mendes, quando foi alvejado por um tiro na porta dos fundos de sua casa em Xapuri, quando saía para o banho. O banheiro da residência – assim como na maioria das casas simples na Amazônia – fica do lado de fora, no quintal. O assassino estava de tocaia numa área de mata aos fundos da casa de Chico.

“A dor das ameaças de crescer ainda mais a destruição que eu vi com meus próprios olhos em Rondônia; a dor pelas vidas vegetais e animais que aprendi a amar ainda mais naquela época; a dor pelas perdas dos sabores do tucumã que a família do arquiteto Luiz Leite de Oliveira me ensinou a comer com café e farinha daquela grossa que antes não conhecia e tinha que aprender a cuidar também para não quebrar os dentes; e a dor pela minha própria ignorância a respeito da Amazônia.”

“Por que eu nunca havia ido ao Acre conhecer Chico Mendes? Ele estava tão perto de onde eu morava. E eu nem sabia direito quem era, nem conhecia o drama dos seringueiros, dos “soldados da borracha”; doeu a falta de experiência profissional por ter deixado passar tantas vidas diante da minha. Lamentei, continuei na luta, mas a dor que mais lamentei foi que a vida de Chico Mendes somente teve importância depois da bala disparada da arma do seu matador”, conta a jornalista.

“Correm agora, lágrimas de lamento pela ignorância de não valorização de nosso patrimônio humano, material, imaterial, sociobiodiversidade, e algo mais. Chico Mendes precisou sair do País para que a sua luta e de seus companheiros fosse ouvida no Brasil, e os brasileiros esperaram pela sua morte para entender a vida.”


“Passados 35 anos, a presença de Chico Mendes está viva entre nós. Sua história é a nossa história, e sua luta é o elixir que bebemos para encorajar nossas lutas coletivas diárias pela Amazônia, por todos os biomas brasileiros e pelo amor ao planeta onde moramos.”

Cristina Ávila enumera:

1.196 camponeses assassinados ou desaparecidos, entre setembro de 1961 e outubro de 1988 – mais da metade durante o regime militar: 756 entre 1964 e 1985; a maioria, 432, no auge da repressão, entre 1979 e 1985, período da abertura política “lenta e gradual” caracterizada por militares.

● Em 1985 Chico reuniu centenas de seringueiros no 1º Encontro Nacional dos Seringueiros, na Universidade de Brasília, atraindo a atenção nacional e viabilizando a criação do Conselho Nacional dos Seringueiros, composto por cem lideranças de todos os estados produtores de borracha natural da Amazônia.

● Em 1987, ele foi convidado a participar de uma conferência do Banco Internacional de Desenvolvimento (BID), onde falou sobre os impactos ambientais e sociais que poderiam ser causados pela pavimentação da BR-364, entre Porto Velho e Rio Branco. O BID suspendeu o financiamento para a expansão da rodovia e passou a exigir do governo brasileiro estudos de impacto ambiental na Amazônia.

● Criou-se a Aliança dos Povos da Floresta, unindo seringueiros, indigenas, castanheiros, pequenos pescadores, quebradeiras de coco e populações ribeirinhas, visando estratégias de proteção da floresta. Vieram a seguir as reservas extrativistas, sem predatorismo, reduzindo os impactos ambientais gerados pelo desmatamento.
Em 2005 era assassinada a religiosa e ambientalista Dorothy Stang, em Anapu (PA). A guerra continuava, implacável.
Junho de 2022: o assassinato do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira reafirmou o discurso daquele ex-presidente da República que preferia atacar a imprensa, fazendo descaso com a vida de indígenas e demais povos da floresta.

“Tradutor de mistérios”

Elson Martins conta:
Francisco Alves Mendes Filho, o Chico Mendes, foi um homem da floresta por excelência. “Aos nove anos, cortava seringa e produzia borracha como gente grande. Aos 44 já era um sábio, tradutor de mistérios e mitos, conhecido por defender a floresta amazônica e os povos que vivem nela. Imagine um menino andando na mata entre cipós, tabocas, árvores gigantescas, espinhos e cheiros, muito cheiro e muita cor! E répteis e ruídos não codificados! Só podia ser uma experiência fascinante. Mistura de curiosidade e medo, como o ronco das guaribas nas copas fechadas, no alto.”

“Assim ele formou seu imaginário, sua coragem, seu deslumbramento. E sem nunca ter saído daquelas entranhas se fez homem, original no andar, no vestir, no falar… Para enfim plantar as ideias de sustentabilidade. No Acre, no Brasil e de certo modo no mundo.”

Prossegue Elson:

“Acabou por contrariar interesses daqueles que dão prioridade à ambição e ao saque. No dia 22 de dezembro de 1988 foi morto de tocaia com um tiro de espingarda calibre 12 no peito, e caroços de chumbo em cima do coração, no quintal de sua casa, na pequena e histórica cidade de Xapuri, pelo peão Darcy Alves, filho do fazendeiro Darli Alves. Faz 35 anos que sua morte abalou e empobreceu o mundo. Ele completaria 80 anos de idade no dia 15 de dezembro.”

Conflitos chegam à cidade

Um ex-ministro do Meio Ambiente chamado Ricardo Salles, de duvidoso caráter, perguntou no programa “Roda Viva”, na TV: “Que diferença faz Chico Mendes?”. Em sua fleuma britânica, sem queimar velas para desprezíveis “defuntos” incapazes de enxergar a história de verdadeiros heróis brasileiros, o jornalista Elson Martins conta na revista Xapuri:

“Chico Mendes nasceu no seringal Porto Rico, em Xapuri (AC), a 15 de dezembro de 1944. Os pais moravam na colocação Bom Futuro, uma unidade de produção que ocupa, em média, 300 hectares de floresta densa com três “estradas” de seringa (caminho que acessa 150 árvores produtoras do látex). Na forma de pétala, a “estrada” tem partida e chegada no mesmo ponto: a casa do seringueiro numa pequena clareira aberta na mata fechada.”

“As colocações se ligam à sede do seringal por um caminho mais largo, o varadouro, utilizado pelos comboios de burros que levam as mercadorias (aviamento) para o seringueiro e recolhem a borracha produzida. Em 1955 a família mudou-se para o seringal Equador, colocação Pote Seco, próximo ao seringal Cachoeira, ainda em Xapuri. Lá, aos 16 anos, Chico conheceu Euclides Távora, a pessoa que lhe ensinou a ler e pensar sobre injustiças sociais.

“Euclides era um Tenente do Exército Brasileiro que tinha participado da Intentona Comunista organizada por Luiz Carlos Prestes, em 1935. Com a derrota de Prestes, foi preso juntamente com outros participantes na Ilha de Fernando Noronha, de onde conseguiu escapar com a ajuda do influente militar Juarez Távora, seu tio, um dos generais da ditadura de 1964. Após a fuga, viveu no Pará, depois se exilou na Bolívia, onde participou de levantes armados com os mineiros daquele país. Temendo ser preso novamente, entrou na floresta boliviana e de lá atravessou a fronteira para o Acre.”

Líder seringueiro Chico Mendes (Acervo O Estado de S. Paulo)

“Em 1961 visitou a colocação do pai de Chico Mendes, distante três horas de caminhada da sua, interessando-se pela vida do jovem seringueiro. Chico passou a visitá-lo nos fins de semana para ouvir rádio (à pilha) e conhecer jornais velhos, com o novo amigo que o ensinou a ler e escrever. Melhor, ensinou a ver como acontecia a exploração do homem pelo homem nos seringais.“

Em 1965 Euclides adoeceu, viajou em busca de tratamento e Chico nunca mais o viu. Uma década depois, o Acre entrou em reboliço com a “revoada de jacus” que chegava de outras regiões do País para bovinizar o estado. Na verdade, se tratava da desarrumação completa dos seringais, diante da qual os seringueiros, analfabetos e desamparados, eram pressionados a abandonar suas colocações e se tornar estatísticas de fome nas periferias urbanas.”

“As famílias viviam aterrorizadas. Recebiam visitas de capatazes, jagunços, advogados e policiais (civis e militares), que exibiam documentos falsos da compra dos seringais e estabeleciam prazos para que saíssem das terras. Ao mesmo tempo, queimavam barracos, destruíam roçados e fechavam caminhos na floresta com a derrubada de arvores. Os policiais prendiam seringueiros e posseiros e os torturavam nas delegacias. Em alguns casos, obrigavam-os a assinar acordos com os fazendeiros, tendo uma arma apontada para sua cabeça.”

Conheceu agora, sr. Ricardo Salles?

Sindicatos e empates

“Aflito, Chico Mendes percorria os seringais tentando organizar uma resistência. Em 1975 soube que uma comissão da Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) estava promovendo um curso de lideranças sindicais em Brasileia na fronteira com a Bolívia, e foi para lá. Fez o curso e participou da criação do Sindicato dos Trabalhadores no município, no dia 21 de dezembro. Estava tão eufórico que levantou suspeitas do delegado da Contag, João Maia da Silva Filho, que pensou tratar-se de um olheiro dos pecuaristas. A suspeita era infundada, Chico chamava atenção porque ajudava a maioria que não sabia escrever a preencher a ficha de filiação.”

Zuza, o irmão, que morreu de covid-19, contou a história da família a Elson Martins (Foto Raimari Cardoso)

“Acabou sendo eleito secretário-geral da entidade, compondo a diretoria com Elias Rozendo, Wilson Pinheiro e outros. Ele sabia que a prioridade, como lhe ensinou Euclides, era alfabetizar e conscientizar os seringueiros e posseiros para que lutassem contra a exploração e expulsão das terras. E a Contag passou a ser uma grande aliada ao colocar à disposição da classe um bom advogado, o cearense Pedro Marques da Cunha Neto, que apresentou o Estatuto da Terra e o Código Civil como instrumentos jurídicos de defesa dos direitos dos trabalhadores rurais. Isso era novidade para quem nunca fora reconhecido como categoria funcional na legislação brasileira.”

Vida trágica

Ainda, Elson:
“O pai de Chico, seu Francisco Mendes, tinha uma das pernas defeituosa, o que lhe dificultava andar. Era um homem mal-humorado, mas inteligente e contestador das regras do seringal. Sabia ler e escrever. Já a mãe, Iraci Mendes, de origem portuguesa, era alta, loura e bonita, além de simpática e generosa. Chico herdara traços de ambos: Inteligência, coragem, simplicidade. Casou-se duas vezes: a primeira, em 1969 com Eunice Feitosa de Meneses, no seringal Cachoeira, com quem teve duas filhas: Ângela Maria e outra que morreu cedo.”

“O casal separou-se em 1971, época em que Chico começou suas andanças, espalhando lições de resistência. Nessa atividade conheceu Ilzamar, uma bela jovem do seringal Santa Fé que se tornou mãe de Elenira e Sandino, e em cujos braços morreu em 1988. A família, apesar dos encargos de sindicalista que abraçou e o mantinham afastado, era sua grande paixão. Em algumas fotos com Ilzamar e as crianças, ele deixou transparecer esse sentimento. “Por que não conseguimos ser felizes juntos?” – escreveu no verso, lacônico.”

“A mãe de Chico engravidou 19 vezes e morreu de parto aos 42 anos. Ou seja, Chico teria 18 irmãos se a maioria tivesse vingado. Sobraram seis – quatro homens e duas mulheres – e ele era o segundo mais velho. No mesmo ano em que a mãe faleceu, Chico perdeu uma das irmãs e o irmão Raimundo. Passou a cuidar dos cinco mais novos enquanto o pai, cansado e doente, trabalhava apenas na agricultura de subsistência. Hoje, seus parentes e amigos têm morada segura no Seringal Cachoeira, desapropriado e ocupado por extrativistas que praticam manejo comunitário de produtos madeireiros e não madeireiros, aplicando conceitos de sustentabilidade. O projeto é modelo de manejo comunitário no Acre e na Amazônia.”

Apesar de tudo, os revezes conhecidos nos anos 2000 impõem cuidados e constante vigilância:

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“Você terá que ser pai e mãe dos pequenos”

“Em março de 2007, encontrei em Brasília o José Alves Mendes, o Zuza, irmão mais novo de Chico Mendes com o qual mantive uma longa conversa sobre a vida de sua família. Eu queria saber como era o jovem Chico antes de se tornar o grande líder dos anos 1970 e 80. Mais que irmão, Zuza se tornara seu companheiro de lutas, e tal qual ele, vivia ameaçado de morte. Zuza não se fez de rogado para falar com emoção da família marcada pela tragédia. Disse que Chico, aos 16 anos, tornou-se “pai e mãe” de uma escadinha de irmãos menores.”

“A tragédia fustigava a família. O pai, Francisco, aleijado da perna, piorou ao cortar um cipó fino, com terçado afiado, que quase decepou o joelho da perna sã. Desde então suspendeu o trabalho na seringa. Raimundo, que aos 14 anos era o xodó da mãe e ajudante do pai, queria mesmo era ser seringueiro. Insistiu tanto que o pai pediu ao Chico que abrisse para ele uma estrada. Na véspera de se iniciar na atividade, entretanto, o pai deu a ele outra tarefa: matar um porco para tirar a banha usada como óleo de cozinha, depois levar comida para o grupo de seringueiros que, juntamente com Chico Mendes, se encontrava acampado na mata fazendo a limpeza de outras estradas.

“Na época, Zuza tinha sete anos de idade e vivia grudado a Raimundo. Os dois combinaram sair para o primeiro “corte” de madrugada, escondido do pai, a tempo de retornar no meio da manhã, antes da matança do porco. Assim, deixaram o barraco de mansinho, de madrugada, embrenhando-se na mata. Raimundo se vestiu a caráter: bermuda encarunchada, sapatos de seringa, facão na cintura, poronga na cabeça e uma espingarda calibre 12, carregada, atravessada no ombro. Lá na frente, num descampado conhecido por Taquara, os dois encontraram caído no caminho um tronco imenso. Foi preciso que Raimundo arriasse a espingarda para dar a mão ao pequeno Zuza. Com pouca luz e a emoção de se tornar seringueiro, deixou a arma escorregar sobre o tronco. A arma disparou e atingiu sua cabeça.

Homenageado na Organização das Nações Unidas com o Prêmio Global 500 (Foto IEA)

“Foi horrível!” – lembra Zuza assustado com o tiro repentino, a fumaça e o corpo de Raimundo caindo sobre ele. Quando procurou sair de baixo do irmão, apalpou sua cabeça e só encontrou miolos e sangue. Correu então aos gritos pela mata, no escuro, e por sorte cruzou com Chico Mendes que se desesperou também. Sua mãe não suportaria essa dor, pensou. Não suportou. Ao receber o filho morto, ela ajoelhou-se no terreiro da casa, olhou para o céu e suplicou: “Se existe um espírito, um Deus, peço que me leve com meu filho. Não quero mais viver”. Desde então, passou a morrer um pouco a cada dia.”

“Despedia-se de um e de outro, dava conselhos…impediu que chamassem a parteira de costume para cuidar dela e não deixou cortar a peça de morim para fazer fraldas para o filho que ia nascer. “Vai estragar a fazenda”! Chico chorava ao ver a mãe escolhendo a morte. queria levá-la para a cidade, numa rede (não tinha estrada), para atendimento médico… A mãe implorava: “Filho, não se afaste de mim. Preciso lhe dar conselhos antes de partir”. O pai, em pé, encostado na parede do quarto, também chorava, aquela e outras dores, e resignado dizia: “Sua mãe vai morrer mesmo, Chico”.

“Chico ainda buscaria socorro numa última colocação, quando a mãe lhe chamou e disse:” Chico, se acalme. Você terá que ser pai e mãe dos irmãos pequenos. Não deixe que eles passem fome”! Transtornado, ele seguiu em prantos em busca de ajuda. Quando retornou, dona Iraci tinha morrido. Ele a viu inerte, com sua tez branca, os cabelos loiros e cacheados, sem a voz doce e conselheira que repetia, repetia… Era a imagem da mãe de seringal que, em situação inesperada, emparelha fragilidade e força, ternura e frieza, escuridão e luz.

Força e dor

“Assim, de dor em dor, Chico aprendeu a ler, pensar e agir. Não somente para criar os irmãos, mas também liderar os empates, defender a floresta, criar as reservas extrativistas, garantir a permanência dos seringueiros acreanos em suas colocações. Na época, Chico ainda andava sem rumo. Completou sua formação educacional frequentando o Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização) e por iniciativa própria procurava organizar um grupo para discutir a criação de cooperativas para conquistar a autonomia dos seringueiros. Também se interessava pelas Comunidades Eclesiais de Base, da igreja de D. Moacyr Ghechi, através das quais conquistaria mais aliados.”

“Em 1975, ao saber que a Contag iniciara a organização do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasileia, foi para o município e tornou-se secretário-geral da entidade. Em 1979 a superintendência local do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) deixou vazar um relatório preocupante, nomeando os pretensos novos donos do Acre.

O documento registra:

218 latifúndios por dimensão que somam 5,8 milhões de hectares.
3.102 latifúndios por exploração abrangendo 6,4 milhões de hectares (quanta desigualdade!).
80% das terras acreanas (16,4 milhões de hectares) se encontram nas mãos de latifundiários, grileiros e especuladores.

Varadouro, jornal alternativo que nasceu para apoiar a luta dos seringueiros, ribeirinhos, posseiros e indígenas, em sua edição nº 19 de maio de 1980 publicou uma lista deles: Agropecuária Cinco Estrelas S.A.; grupo Cruzeiro do Sul; Fazenda Boa Esperança, de José Bento e Pedro Bento Valias; Fazenda Morungaba, Agronorte e Condomínio Tarauacá, todos de Agapito Lemos; Condomínio Acurawa, trabalhando com três empreiteiras e 30 subempreiteiras sob a responsabilidade de um paraguaio de nome Pablo. Ao todo somam 1 milhão e 300 mil hectares em Tarauacá, no Vale do Juruá.”

“A Companhia Paranaense de Colonização Agropecuária e Industrial do Acre (Paranacre), também em Tarauacá, representada pelo grupo Viação Garcia e outros, dizia explorar pecuária e seringa em 600 mil hectares. No vizinho município de Feijó, a Cia de Desenvolvimento Novo-Oeste, do grupo Atlântica Boavista havia adquirido 510 mil hectares. Também em Feijó, nas cabeceiras do Rio Envira, a Fazenda Califórnia (Grupo Atalla) detinha 427 mil hectares, mas procurava legalizar 604 mil. Na sede da fazenda eram vistos índios Kulinas desempenhando atividade de vaqueiros.”

“Nos vales do Acre e do Purus a situação era mais tensa, porque o acesso às áreas conflitadas era facilitado, para agressores e agredidos. Em Xapuri, sobretudo, o capataz da Bordon, Tomás, reagia com violência aos empates. De tanto brigar com os seringueiros, a empresa desistiu do projeto no estado. Em Brasileia, terra de Wilson Pinheiro, a Fazenda Carmem (no Seringal Carmem) tentou “limpar” a área através de acordos desfavoráveis aos posseiros.”

“O caso mais escandaloso foi o da Colonizadora Agropecuária São Paulo Amazonas S.A.(Coloama). Seu projeto inicial, que previa a construção de uma cidade com prédios de até 12 andares para seringueiros, estava aprovado para ser desenvolvido no sul do Amazonas, mas houve um impedimento legal por localizar-se em área de 500 mil hectares a menos de 150 metros de uma estrada federal. O proprietário Pedro Aparecido Dotto, de Jales (SP), não se aperreou: transferiu o projeto para Sena Madureira, sem nenhuma modificação. Tinha a garantia de CR$ 40 milhões do Probor, Proterra e Basa, mas o Incra solicitou a anulação de seu registro de colonizadora e iniciou discriminatória judicial para impugnar a documentação dos imóveis. A colonizadora pretendia regularizar área de quatro milhões de hectares.”

“Vão aparecer muitas viúvas no Acre”


Elson, narrando novamente como o fizesse pouco depois de tudo isso:
“Os fazendeiros contratavam peões e jagunços fora do Estado, para não criar embaraços com laços familiares se o fizesse com os locais. E porque uma boa parte dos seringueiros não concordava em cortar arvores seringueiras e castanheiras, muito menos tocar fogo na mata. A mão de obra era importada de Cascavel e outras cidades do Mato Grosso e Paraná. Essa gente era recolhida nas delegacias de polícia, por isso viajava de ônibus, com roupa suja e de cabeça raspada.”

“O pecuarista Benedito Tavares do Couto, de Mato Grosso, chegou a contratar um Boeing 737 para trazer 70 operadores de motosserra até Rio Branco. O delegado regional do Ministério do Trabalho, Humberto Brasiliense, acompanhou a equipe da Contag algumas vezes, para averiguar denúncias da existência de cemitérios particulares existentes nas áreas de desmatamento.”

“A força dos oito sindicatos criados pela Contag apareceu no empate que recebeu o nome de “grande mutirão contra a jagunçada”. Aconteceu em setembro de 1979 nas margens da BR-317, nas proximidades da cidade de Boca do Acre, ao sul do Estado do Amazonas. Posseiros da área estavam sendo ameaçados por jagunços mantidos por um rico pecuarista de São Paulo, interessado nas terras do Seringal Senápoles. Eles reclamaram que os jagunços usavam metralhadoras e rifles para matar animais domésticos e assustar as famílias com disparos ao anoitecer.”

Falecido Jacob Bittar e Luiz Inácio Lula da Silva: enquadrados na LSN (Acervo O Estado)

“Os sindicatos juntaram 300 homens para enfrentar os agressores. Os jagunços, em número de 12, correram para o mato e foram acolhidos por pecuaristas vizinhos que os transportaram de carro e de avião monomotor para outros municípios. Mas os sindicalistas prenderam o capataz e 45 peões, que só foram liberados após serem submetidos a uma espécie de tribunal montado no meio da estrada (BR-317). Eufórico com o resultado, Wilson Pinheiro deu entrevista à rádio de Brasileia afirmando que os sindicatos não iriam, a partir daquele momento, permitir que nenhuma árvore fosse derrubada em todo o estado.”

“A resposta dos fazendeiros foi imediata e raivosa: “Se é assim, vão aparecer muitas viúvas no Acre”! A primeira delas foi a esposa de Wilson, Terezinha Pinheiro, cujo marido foi assassinado de tocaia, na sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasileia, no dia 21 de julho de 1980.” Como de outras vezes, a polícia encontrou dificuldades de identificar e prender os criminosos, mas os trabalhadores, quando voltavam do velório mataram o principal suspeito, o capataz Nilo Sérgio, que encontraram na estrada entre Brasileia e Assis Brasil. O metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva esteve no velório e discursou dizendo: “na hora da onça beber água”. Por isso foi indiciado pelo Ato Institucional nº5, criado na Ditadura Militar, juntamente com João Maia, Chico Mendes, Joaquim Francisco da Silva (presidente nacional da Contag) e o líder metalúrgico Jacob Bittar, do ABC paulista.

Nilo Diniz, Raimunda Bezerra (em pé) e Elson Martins: pela memória de Chico (Foto Montezuma Cruz)

A vez de Chico

“Chico assumiu o comando do movimento a partir de Xapuri. O novo líder conquistou aliados para a resistência acreana na cidade, no País e até no exterior. Em 1985 criou o Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), que colocou em discussão temas como reserva extrativista, exploração comunitária e nacional da biodiversidade amazônica, unidades de conservação, demarcação de áreas indígenas, estudos de impacto ambiental nas estradas e outros projetos abertos na região.”

“A luta de Chico Mendes foi monumental e perigosa. Nos anos 1970 e 1980 espalhou-se uma energia ruim no Estado inteiro. A sociedade extrativista se contorcia de dor, mas quase ninguém se importava. As vantagens, os direitos, as leis, as oportunidades oferecidas pelo regime militar excluíam o pioneirismo e a tradição da terra. As motosserras roncavam na floresta e o fogo seguia atrás, queimando a paisagem. Quem mais se preocupava com o futuro da tradição extrativista eram os subletrados da floresta, a exemplo. Foram eles que reagiram com os empates e trouxeram o conflito para a cidade. A Universidade Federal do Acre, cujo perfil foi objeto de estudo do especialista Oswaldo Sevá, de São Paulo, professor da Unicamp concluíra que a instituição era “tranquila demais para a sociedade efervescente que a cercava”. O reitor Aulio Gélio recebia recados desaforados dos coronéis da ditadura, morria de medo deles, mas metia medo nos professores e alunos.

“Àquela altura, Chico já era um experiente palestrante e tinha formado uma boa lista de aliados. Entes estes, a antropóloga Mary Allegretti, que o conhecia desde 1978 e não o largou mais; o assessor de Bill Clinton (Presidente dos Estados Unidos), Steve Schuartzsmann, com estudos realizados na Amazônia, e Adrian Cowvel, cineastra britânico que acabou realizando o melhor filme documentário sobre Chico: “I Want to Live” (Eu quero viver).

“Um grito no ouvido do mundo”

O sociólogo Nilo Diniz, ex-diretor do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) e de Educação Ambiental do Ministério do Meio Ambiente, depõe.

“Chico deixou o exemplo de uma pessoa que batalhou durante boa parte da vida em prol de um bem comum iniciado na luta sindical em defesa dos seringueiros, mas ele mesmo percebeu depois que a causa dele tinha uma amplitude maior, embora os seringueiros, castanheiros, nações indígenas e todos povos da floresta permaneçam uma importante referência para um projeto verdadeiramente brasileiro no sentido inclusivo no sentido pré-colombiano, pré-cabraliano, o que significa dizer: um Brasil que não esconde a sua história.”

“Ele é referência na luta em defesa da justiça social, também chamada de socioambiental, porque inclui em sentido amplo as presentes e futuras gerações até as diferentes espécies de vida que a gente encontra.”

Chico Mendes – um grito no ouvido do mundo é o nome do livro escrito por Nilo Diniz.

“Eu vejo que Chico foi um grito no ouvido do mundo, e em determinados momentos serviu tal qual outras lideranças mundiais para chamar a atenção de forma dramática como foi toda a vida dele, principalmente no seu final quando foi assassinado, despertando de vez a Amazônia, o País e o Mundo para a defesa da vida.”






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